sábado, 11 de maio de 2019

CRÓNICAS DE ENFERMARIA


Numa unidade hospitalar existem, como é natural, vários tipos de doentes e ainda mais de enfermidades e deficiências. Subsiste sobretudo dor. Há, igualmente, várias formas de lidar com a dor e o isolamento, pois o tempo teima em andar a passo de caracol. A maior parte entrou de maca, com guarda-de-honra de bombeiros, sem passadeira vermelha. Vendo-se com dois réis de saúde, todos esperam pela alta como magala pela peluda. Estão bem tratados e assistidos, podiam querer deixar-se estar mais um pouco. Mas não senhor! A casinha, lá na terra, está a sentir-lhes a falta.
Como também é próprio do género humano, formam-se vários tipos de convívio e socialização com outros parceiros de infortúnio, se as condições de cada um o permitem, e bem precisado é tal contubérnio, indo aqui nesta intimidade aqueles que são mais expansivos e os mais taciturnos. Entre esta vizinhança de enfermaria, nunca ocorrem candeias às avessas. No ramerrão diário, limitam-se a contar a sua história, aventuras e heroísmos, papagueiam habilidades e negócios, narram trajectos e vidas em que se gastaram e consumiram, acabam inevitavelmente por chorar as suas mazelas.
Numa enfermaria de quatro camas, encontrei apenas um homem que falava e ouvia. Era de Vilar Formoso e tinha 82 anos.
Dos outros dois, com 91 e 92 anos não se conseguia, nem eu nem ninguém, extrair-lhes uma palavra. Embora não falassem, ambos percebiam o que se dizia. Eram casos graves, precários. Estavam ali, com camas lado a lado, serenamente, numa luta interna, a maior parte dormidos ou sedados. Um deles sofria de grave problema respiratório, com dois AVC’s, durante a noite produzia o ruído de uma chaleira ao lume; talvez, melhor dizendo, semelhante ao gorgolejar de um bebé, mas muitos decibéis acima. O seu estado de saúde ia melhorando, graças aos aturados cuidados de enfermeiros e auxiliares, que não o largavam noite e dia.
O de 92 anos, que passou o aniversário dos 93 na enfermaria, nem se terá apercebido da efeméride, embora os familiares fizessem questão de estar presentes, naturalmente sem grande vontade para comemorar a data. Mexia-se muito, uma noite passou toda a berrar, em voz de barítono, sem se perceber o que dizia. Pobre homem! De audível e perceptível, consegui ouvir-lhe o pedido, talvez gravado há muito no subconsciente:
- Quero uma pinga de vinho!
A delicadeza, o profissionalismo e a bonomia dos enfermeiros, operavam milagres. Percebiam a carência dos dois anciãos acamados, faziam os possíveis e os impossíveis para acudir às suas necessidades básicas.
Para nós – eu e o homem de Vilar Formoso – por parte dos profissionais havia palavras de simpatia, de bom humor. Em certo fim de tarde, quando recolhia os recipientes ou sacos do cloreto de sódio, vulgo soro fisiológico, suspensos dos respectivos suportes móveis, um dos mais expeditos enfermeiros acalmou-nos com uma graça:
- Não se assustem! Estou só a desarmar a árvore de Natal!
A propósito deste soro, que nos prende à vida, asseguro que não é uma das coisas que mais me agrade. Não decorre porque tal tratamento seja doloroso, mas por uma questão de mobilidade, uma vez que eu, andando a circular durante o dia, tinha de levar comigo o suporte, haste alta que se movia com rodados, tendo o cuidado de não esticar o tubo que levava o líquido ao cateter. Deslocava-me com aquela companhia ao meu lado, às vezes até parecia que ambos bailávamos umas czardas húngaras. Era a minha “bailarina”. Ia ao WC, ela acompanhava-me; tomava uma refeição, ela vigiava; recebia uma visita, ela assistia como mirone surda e muda. Em determinada altura, indo à casa de banho para lavar a boca, disse eu para o homem de Vilar Formoso, exibindo a escova e a pasta dentífrica:
- Vou ali lavar os dentes à boneca.

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