Independentemente do meu bom ou mau aproveitamento no colégio da Via
Sacra, em Viseu, as férias tinha-as por conta do balcão da mercearia e taberna
de meus pais. Aquele apostulado abominável deixava-me, frequentes vezes,
sozinho entregue ao negócio e a um rádio de válvulas que me mitigava o tédio,
que eu punha na máxima potência quando tocava a música da minha preferência, o
que levava a freguesia a dizer que eu só gostava música de “caldeiros e
guitarras de chinfrineira”. Reconheço hoje que, em tal função, conheci muito
tipo de gente, desta humilde de porte e directa de linguagem, sem protocolos ou
fingimentos, que me levava quase sempre, mais do que atender às suas
necessidades, mitigar as minhas com os seus ensinamentos e as suas histórias.
Entre uma aldeia e outra, com paragem demorada nos povoados, percorria
um pobre de Cristo, com uma carripana de mão, o itinerário da venda do peixe, a
maior parte das vezes sardinha ou carapau. Era um velhote cheio de rugas, baixo
e atarracado, de feitio birrento e entremetido, quando não taciturno como uma
dorna vindimeira. A aba do chapéu virava-a para cima, à laia dos pioneiros da Nova
América, falava com voz rouca e, quando parava a carripana, sentava-se num dos
varais a berrar pelas freguesas. Julgo que o seu nome era Carlos, mas a alcunha
ficou na memória - o “Grilo". Não trazia mais do que duas ou três caixas
de um peixe amolecido pelo sol, afundado em sal e picado por um milheiro de
vespas. Valia ao pobre do homem uns sacos de serapilheira, colocados por cima
do peixe, que só destapava para exibir à freguesia os exemplares mais frescos e
"com sangue na guelra".
Parava invariavelmente à porta do estabelecimento que meus pais
exploravam e tinha sido de meu avô. A troco de um cálice de aguardente, confidenciava-me
aventuras de outros tempos, credíveis ou inventadas, nunca cuidei em apurar.
Falava pausadamente, abria grandes parêntesis de silêncio, por vezes exibia uma
navalha que já tinha aberto "ao verde" a muito sacrista. Eu não
acreditava e ele ria quando eu lhe dizia que teria aberto “ao verde” de muita
melancia. Quando pressentia o clímax do meu interesse, calava-se, apontava para
o pequeno cálice vazio e esperava que eu lho enchesse. Se queria o final da
história, vá de levar o combustível à conta de perdas e danos. Enfim, era a sua
propina, não fosse ele o "Grilo"!
Para provar a excelência da sardinha, emborcava uma, mesmo crua,
fazendo-o com apreciável deleite. De tanto o ver fazer aquilo, um dia tomei
fôlego para fazer o mesmo, mas sempre com o gorgomilo a querer saltar na
garganta. E para não deixar minguados os meus créditos, sobre a dita ementa, um
cálice da rija. Ele assentia com a cabeça, fechando o olho direito, à laia de
querer dizer - "temos homem!"
Das muitas histórias que lhe ouvi, uma em particular mereceu-me
registo, de que fiz uso num livro publicado anos depois. Em duas penadas, aí
vai.
Quando novo, o "Grilo" e outros da mesma tropa fandanga
costumavam tomar de assalto o meloal de um velho pernóstico e sovina lá da
terra, o qual pensou resolver a situação vigiando o dito meloal, de dia e
noite, com um bacamarte ao lado. Colocou na sorte de terra uma cabana, destas
de colmo que se transporta ambulante sobre uma padiola. Viessem lá os marmanjos
aos melões! Chumbo para cima, ora pois!
Aconteceu que a turba acometeu quando menos esperava, precisamente numa
noite em que se deixou dormir na cabana de colmo, de tal sorte que os roncos e
assobios se ouviam à distância. Fluidos e rápidos, os flibusteiros cortaram
quantos melões puderam levar. Andavam com passo raposeiro, mas nem seria
preciso, pois o homem, que não era de pau e não conseguia ficar todas as santas
noites velando, ferrava bem o galho.
Depois de servidos, de que se lembraram os marotos? Tomaram conta dos
quatro varais da padiola onde se encontrava a cabana, tão cuidadosos como se
fosse a procissão da orago, levando-a até à beira de um poço existente na
propriedade, deixando a abertura do refúgio na direcção do abismo de água. Logo
começou a última parte do entremez, desatando todos à uma em lagaré danado.
Está bom de ver que o inusitado chinfrim tinha de forçosamente despertar o
proprietário do meloal, o qual berrava enquanto se desembaraçava de entre as
mantas e deitava mãos ao bacamarte. Saiu para fora com ímpeto, com a arma já
pronta a fazer fogo; porém, não topou chão debaixo dos pés e chapuz ! Tinha
acabado de sair da arca de Noé.
Narrativas como esta faziam as delícias de um jovem estudante, como eu
era então. Algumas surgiam nos narradores como simples bravata, outras traziam
foros de realidade; nenhuma delas eu recebia por banalidades. Na sua textura,
na sua simplicidade, nelas havia muito do povo, da puridade de quem é humilde
mas não se deixa humilhar. Também a matreirice, é certo, desta lusa gente, em
particular a da nossa querida Beira, aferida desde antanho pelas vicissitudes
que nos fizeram passar essa praga de romanos, dos mouros, dos castelhanos,
franceses, espanhóis, mais recentemente das troicas e o diabo a quatro.