O Teodósio preparava a carne com
jeitinho sabedor, doseando as partes coriáceas, gordas e de qualidade inferior,
com a carne tenra e fresca que costumava aparecer quando o rei fazia anos.
Entrava boi duro e estafado de arado e carreta, saía vitela, jurada e
trejurada. De dez léguas em redor caíam todas as freguesias na sua chafarica. A
carne expunha-se em ganchos de ferro, sem a mínima ordem, ou em tarimbas
compostas às três pancadas com meia dúzia de ripas e dois cepos. O veterinário
do concelho punha o carimbo em tudo o que fosse carne. Os melhores lombos e
bifes estavam-lhe, a título gratuito, reservados. Nos mimos das melhores peças
seguiam-se, mas a título oneroso e por ordem de preferência, o doutor juiz da
comarca, o delegado, os advogados e os médicos, o presidente da câmara e o
chefe das finanças, sendo o rebotalho distribuído ao restante pagode que era,
afinal, quem pagava por todos.
O Teodósio e mais quatro homens
demolhavam a língua em paleio, tirando devassa das vidas alheias. Foi neste
abandono que um perdigueiro entrou, sorrateiro, no açougue. À cautela, sem ninguém
lhe estorvar as passadas, cheiricou, bispou à direita e à esquerda: era tudo uma
fartura. Sem mais aquelas, mais alceiro que ladrão de esmolas, abocanhou o
melhor pedaço de acém composto que estava em cima da banca. Em andar firme,
rabo entre as pernas, expediu rápido o atrevido, passando entre os homens com velocidade
igual ao dobro da desfaçatez.
— Chô, cão! Larga! Larga!
O Teodósio berrou, os homens
berraram.
— Foi bem aviado — notou um
parceiro, não deixando de sorrir ao gesto do larápio.
O Teosósio não cabia em si. À
força de tanto berrar, rouquejava. O acém que tinha preparado para a
encomenda do doutor juiz, tinha sumido. Com a morte na alma, puxou de um
facalhão e cravou-o no cepo do talhe. Ali jurou o talhante que levava mais fé
no pagamento do agravo que na própria salvação da alma. O dono do cão havia de
pagar a carne, e bem paga.
Um dos homens declarou
formalmente: — Aquele perdigueiro é do doutor Riodades.
A questão estava no pagamento do
desaforo. Cão rouba, dono paga. Além disso, tinha ele boas testemunhas capazes
de jurar sobre um volume da Bíblia sagrada.
— O doutor Riodades, que é advogado, não paga. Em
casa de letrados e advogados nunca faltam razões — dizia um dos ginjas em tom
sarcástico.
— A Justiça tem sete mangas... e
cada manga sete capelos — assegurou outro.
Antes que o caso fosse levado
pelo olvido, o açougueiro aperaltou-se, na manhã seguinte, para uma conversa
com o dono do cão. Veio a criada, um pedaço de fêmea dengosa, que muita má
língua jurava partilhar com o patrão cama e mesa.
— O senhor doutor está?
— Está. Quer-lhe alguma coisa?
— É por via de uma palavrinha.
Uma pequena consulta...
Volvidos uns minutos, a criada
mandou entrar. O senhor doutor estava no escritório.
— Então o que o traz aqui? Algum
devedor remisso que quer pôr na senhora justiça?
— Antes fosse... Antes fosse...
Eu apenas lhe quero pedir um conselhozinho... uma pequena consulta.
— Vamos...
— Vossa excelência sabe muito bem
que eu tenho um talho donde vivo e tiro os meus fracos rendimentos. Tenho as
licenças em dia, pago as minhas contribuições, faço o negócio limpinho, que só
Deus e eu é que sabemos. Temos que, ontem mesmo, à tardinha, estava eu de
conversa com outros amigos, um cão entrou no talho sem eu dar conta e ripou-me
o melhor pedaço de carne que eu tinha guardada para um cliente.
Bem recostado, o causídico tinha
cruzado as pernas e acendeu um cigarro.
— Se estava guardada — disse o
advogado, soprando ao fósforo — como é que o cão lha tirou?
— Ora, muito bem. Tinha-a em cima
da banca, foi só o tempo de virar costas e dar dois dedos de conversa.
— Estou vendo. Agora você quer que
o dono do cão lhe pague a carninha, não é?
— É sim, senhor doutor.
— E sabe quem é o dono do cão?
— Sei sim, senhor doutor.
— E as testemunhas que estavam
consigo, também sabem?
— Sabem sim, senhor doutor.
— Pronto! O caso está resolvido
com duas palhetadas. Você dirige-se ao dono do bicho, apresenta-lhe a conta e
narra-lhe o que se passou, tim-tim por tim-tim.
— E o dono é obrigado a pagar-me,
senhor doutor?
— Claro que é. Segundo a lei,
quem estiver obrigado a pagar um dano, deve reconstituir a situação que
existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação,
compreendendo esta o prejuízo causado e os benefícios que o senhor, como
lesado, deixou de receber por não poder vender a carne. Como o dito cão se
apropriou da sua carne, o senhor tem o direito à indemnização do prejuízo
havido. Chegue-se ao pé do homem e peça-lhe o dinheiro da carne.
Teodósio ia a dizer qualquer
coisa, mas arrependeu-se. Depois, consultando o relógio de corrente, exclamou:
— Nesse caso, senhor doutor,
tenho de lhe pedir que me pague quinhentos escudos, tal é a conta que o seu
perdigueiro deixou no meu estabelecimento quando fugiu com o bocado de acém.
O advogado estarreceu.
— Ainda mais essa ! O meu cão?!
— Sim, senhor doutor, o seu
perdigueiro. São boas testemunhas o José Rafael, o pedreiro Alberto Sapo e o
«Boas-Novas», que é varredor na Câmara.
— Agora é que você me apanhou!
Sempre tem uma lábia... Quanto lhe devo?
— São só quinhentos escudos,
senhor doutor, — disse o talhante, esfregando as mãos. — E é por ser para quem
é, que a peça tinha passante de cinco quilos.
O advogado procurou a carteira no
bolso interior do casaco, contou cinco notas de cem e entregou-as nas mãos do
outro.
— Tome. A carne está paga.
O Teodósio contou e, com um
sorriso maroto, arrumou as notas no bolso das calças.
— Muito agradecido ao senhor
doutor. E com esta me vou. Muito bons dias. Passe bem.
Deu meia volta e agarrou a
maçaneta da porta. O advogado inclinou-se para a frente na cadeira e proferiu:
— Alto aí, ó Teodósio! Não se vá
já embora, homem. Contas são contas. Os meus honorários são nada mais, nada
menos, do que mil escudos! Isto é para toda a gente. Faça favor de pagar a
consulta.
O Teodósio, com a cara mais
idiota deste mundo, pagou e saiu do escritório batendo a porta.
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