segunda-feira, 4 de novembro de 2019

OS LIVROS EXCOMUNGADOS



Uma das maiores iniciativas culturais do séc. XX foi a criação das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Para mim, das melhores e das mais benéficas. Foi graças a esta iniciativa que eu tive acesso a muitos livros, em S. Romão (Serra da Estrela) e em Viseu (Abraveses), sendo que nesta cidade, não havendo biblioteca itinerante, tinha de percorrer a distância a pé até Abraveses, cerca de 10 quilómetros, algumas vezes debaixo de chuva e com os livros por dentro do casaco.
Os livros iam até às aldeias mais recônditas onde, como é provável, não existisse um único exemplar, a não ser em casa do professor e do pároco, se bem que quanto a este último, como vou descrever, era matéria maldita e excomungada, pelo que devia servir, caindo lá, para acender o lume da lareira.
Este caso verídico passou-se com o poeta António José Forte (1931-1988) quando era funcionário de uma dessas bibliotecas. Indo ele e o seu colega, dois dias depois do Natal de 1960, até uma aldeia minhota (Parada de Bouro –Vieira do Minho) para cumprir o dever de levar livros aos leitores, aconteceu que lá apareceu o padre aos berros e a intimidar os dois funcionários e requisitantes, acusando uns de estarem a emprestar livros “protestantes” e os paroquianos de levarem para casa aqueles panfletos do demónio. Não contente com as palavras, retirou alguns livros das mãos das mulheres que os levavam requisitados e atirou-os ao chão lamacento, ameaçando excomungar quem levasse aquele “mal” para casa.
O que foi ele dizer! Quase todos os que requisitaram os livros, principalmente as mulheres, foram acometidos da mesma psicose, imitaram o padre e atiraram os livros ao chão ou para dentro da carrinha, ao mesmo tempo que proferiam insultos e ameaças. Ao coro feminino, juntaram-se os homens que vinham do trabalho com sachos às costas, ameaçando os “intrusos” que vinham conspurcar quem estava na graça de Deus. É caso para dizer: os tolos não se semeiam nem se plantam: nascem espontaneamente!
Poucos desobedeceram e terão recebido a excomunhão, que não lhes terá feito mossa alguma, ao contrário dos ignorantes que se propuseram como figurantes da época dos cavernícolas. O que valeu para os dois homens da Gulbenkian e para os livros, foi eles darem o fora, evitando que se abrissem covas no chão para enterrar todo o papel, se não fosse mais prático chegarem um fósforo e queimarem aquela papelada de “belzebú”. À guisa de muitos autos-de-fé, vontade não lhes faltaria de queimarem os livros para se verem livres deles e não para verem tições acesos. Ainda pior, se ficassem os dois trabalhadores a pedirem justificações, certamente a percussão das sacholas estaria apta à rachadela de cabeças e a sorte da biblioteca itinerante seria outra.
Ao ler este episódio lembrei-me do Bandarra, o profeta sapateiro. Um dos mais graves crimes que ele tinha cometido, de que foi julgado pela Inquisição, foi ler uma Bíblia em linguagem. Era proibido possuir e ler o livro sagrado traduzido em português, livrando-se da fogueira por uma “unha negra”: não era cristão novo; não quis alvoroçar os cristãos novos, citando trechos bíblicos; abjurou e participou no auto de fé para se livrar dos pecados da obra; prometeu não possuir mais livros sagrados, a não ser o “Evangeliorum” e o “Flos Sanctorum”, não ler nem escrever sobre o Antigo Testamento, sob pena de maior castigo, naturalmente o das brasas.
Imagino se o meu livro “O Padre Costa de Trancoso”, história ficcionada sobre a lenda de um sacerdote do séc. XV que fez gerar 299 filhos em 53 mulheres, estivesse naquela carrinha, ele que foi publicado 47 anos depois! E imagino também, dentro dos parâmetros de “estilismo” dos jurados do Prémio LeYa 2019, que jeito faria um padre deste quilate no seio deles, justificando a repulsa da atribuição do galardão a 409 originais!
Nem sei se aqui há moral da história. Se meditarmos que o caso narrado pelo poeta aconteceu na segunda metade do séc. XX, 420 anos precisos sobre a condenação das leituras de Bandarra, é caso para encontrarmos as razões do atraso cultural que marcou este País, maninho de ideias e cheio de gentios submissos, e para percebermos até que ponto a Igreja, com aquela postura ridícula (felizmente por parte de poucos sacerdotes), foi fazendo perder a fé naqueles em que era suposto firmá-la, transformando alguns em patetas alegres.

2 comentários:

  1. Qual é o título do seu livro? Está à venda?
    Obrigado Caríssimo Fernando Costa (gostei muito deste post; só agora tomei contacto com o seu blogue e este foi o primeiro post que li).

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    1. Caríssimo Seve

      Acabei agora mesmo de reservar o seu exemplar, o qual lhe vou enviar, absolutamente gratuito, com uma dedicatória. Para isso, agradeço-lhe que me indique a morada-endereço - pode ser para o meu e-mail, que é:
      se_costa@ sapo.pt
      ou através desta caixa de comentários.
      Este livro vai para uma 7ª edição e é vendido apenas em dois postos de venda, por assim ser essa a minha decisão "irrevogável". Sei que os livreiros o enviam para o país, que há editoras interessadas na obra (inclusivamente assinei um contrato com uma produtora com vista a uma novela televisiva), mas esta minha obra continuará a vender, como pãezinhos quentes, nos dois sítios do costume.Inclusive participei em programas de televisão sobre a controversa figura.
      É uma obra de ficção sobre a história de um padre de Trancoso, que teve aquela enorme paternidade no ventre 53 mulheres, já referido por Pinho Leal na obra "Portugal Antigo e Moderno". Percorri a Torre do Tombo, à procura do documento de D. João II, que supostamente lhe terá perdoado as"faltas", mas nada encontrei. Sobre o que eu considero lenda (houve um sacerdote, coevo, que teve apenas duas filhas), teci um enredo que pode ser lido por jovens e menos jovens dos 7 aos 97 anos.
      Condimentei aquilo tudo com um fundo histórico e uma espécie de policiário, uma vez que ali se levanta o véu sobre o possível assassinato de D. João II.

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