sexta-feira, 1 de novembro de 2019

VOO ATRIBULADO NA "BARRIGA DE GINGUBA"


Com o meu pai ao serviço da Força Aérea em Moçambique, tinha eu 12 anos, vi-me a fazer uma viagem de avião com ele entre Nampula e a Beira (BA 10), regressando dias depois no trajecto inverso. Na altura, estava ao serviço da FAP um avião que tinha a alcunha de “barriga de ginguba”, designado de fábrica como Nord 2502F Noratlas. Tratava-se de um bimotor de caudas laterais duplas, unidas na traseira do aparelho, mantendo no meio aquela espécie de amendoim (ginguba ou jinguba é o termo Kimbundu para amendoim) onde viajavam passageiros, em número de 35, e carga da pesada, designadamente camiões de combate, como as Berliet.
Foi nessa viagem de regresso a Nampula que o Noratlas, pintado de alumínio e com aquele aspecto de torpedo com asas, foi acometido por uma violenta tempestade, ficando com um dos motores em falha, a engasgar-se. Havia nuvens e turbulência severa, abanando aquela coisa como se um maluco dum barman estivesse a preparar lá dentro um shake de gin e tonic. Pior ainda, quando aquele tipo de aparelho, se bem que robusto, estava limitado a voar a altitudes que não ultrapassavam os três mil e quinhentos metros. Aguenta e cara alegre!
Para quem nunca viajou naquelas circunstâncias, aviso que é a forma mais radical de viajar de avião. Os assentos são em lona, ao longo das janelas redondas, de um lado e outro, pelo que os passageiros vão de costas para a janela. Ali tanto dá levar o cinto de segurança posto como não levar o cinto das calças, uma vez que a carga vai no corredor central.
Naquele dia iam um jipe e uma Unimog, para além de caixas não sei de quê e tralha vária.

Pormenor das portas traseiras do Noratlas

Perante aquela turbulência, este rapaz também turbulento nos seus doze anos, perante um temporal que soprava à trompa, largou o lugar e foi espairecer para a cauda do avião. Foi um delírio. Aquilo é, de facto, uma porta dupla, que se abre para engolir o que quer que seja lá transportado, com apenas duas janelinhas ovais, que se unem quando fechadas. Não há ali assentos, apenas fuselagem. Se aquilo faz abanar aquele que lá viajar em tempo ameno, imagine-se com temporal.
O meu pai não deu conta que eu saí do lugar, visto eu ser na altura tão torto como cordel de pião no bolso das calças,  mas um dos quatro ou cinco membros da tripulação, talvez avisado por ele, decidiu acercar-se da traseira, onde eu placidamente via as nuvens e escassos farrapos de solo pelos postigos, dando ideia que me encontrava em trote sobre um garanhão.
- Tu deves ser marado da pinha, ó miúdo! Vai já para o teu lugar, antes que eu perca a paciência!
Obedeci e ainda lhe ouvi dizer, baixinho:
- Este puto tem nervos de aço.
Mais tarde, com mais assento, encontrei um rifão apropriado: “sofre de medo quem tem medo de sofrer”.
Aterrámos pouco depois, em Nampula, no aeroporto situado perto do bairro da Metecolia. Da “barriga de ginguba” saiu um então herói da guerra, o comandante paraquedista Rafael Durão em uniforme camuflado, então coronel ou tenente-coronel não sei bem, um homem de uma extraordinária coragem na frente de luta. Eu pus-me ao lado dele e assim marchámos, a compasso, até às instalações do aeroporto. Talvez, tirando os tripulantes, que ficaram para trás, fôssemos os únicos a caminhar direitos, uma vez que a maioria dos passageiros vinha com as cores da cidra e a cambalear como se acabasse de sair da centrifugadora da máquina de lavar.

2 comentários:

  1. Grande história! Se fosse comigo, provavelmente as viagens de avião ficariam por essa experiência, ficando assim à mercê de embarcações se quisesse passar pelo ou para além do cabo bojador.

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    1. Tive então, entre os 12 e os 14 anos, algumas experiências curiosas, nas 110 horas de voo que fiz na totalidade, incluindo as deslocações em Moçambique, de Nampula a Lourenço Marque e as viagens em Douglas DC 6 entre Lisboa e Lourenço Marques, com paragens em Bissau e Luanda, bem como no regresso. Havia outro estirão, entre Lourenço Marques e Nampula, com paragens na Beira. Neste aparelho, onde fiz o baptismo de voo, quando fui com a minha mãe para Moçambique (o meu pai já lá estava), verifiquei que um dos motores do quadrimotor a hélices da Força Aérea (antigos da TAP) lançava chamas, bem visíveis à noite quando sobrevoávamos o Atlântico. Disseram-nos que aquilo era normal, mas eu reparei que na escala da Guiné-Bissau, o pessoal de apoio tinha derramado grande mancha de combustível nessa asa, precisamente aquela que era visível da minha janela.
      Ainda havia aquelas viagens de Dakota e nas Dornier, um tipo de avioneta que abanava por todo o lado.
      Maiores percalços já os passei em terra, voando ao nível do alcatrão, sobre 4 rodas.

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