segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

OS BOMBOS E AS MOCAS DO S. BRÁS


Está bem próxima a data do S. Brás dos Montes. É uma romaria anual, no primeiro domingo a seguir ao dia de S. Brás, que se faz desde sempre, talvez mesmo para lá da pré-nacionalidade e do próprio culto católico. Impressiona o aparato e o barulho. Impressiona mesmo!
Não é uma idolatria absurda do cacete; primeiro, porque não há ídolos sacros ou profanos (a não ser o S. Brás, pelos primeiros), depois porque o cacete serve apenas de adorno (embora já fizesse antanho algumas quebraduras de costelas e rachadelas de cabeças). Há, isso sim, o testemunho do que foi um ancestral esguardo pelo sagrado e o supersticioso respeito pela terra. Nestes dois mundos antropológicos não existem perversão e selvajaria. Há reunião de gentes, fraternidade, diversão e religiosidade, pois então!...
Os romeiros alinham por maltas, principalmente as dos bombos, que representam uma localidade ou um grupo. E os que não rufam na pele dos bombos encaixam numa romaria que se move como as lagartas dos pinhais, exibindo ao alto as mocas papudas e toscas, de formas naturais e patuscas, retiradas de qualquer ramo de árvore e mantidas no acervo familiar. Só baixam os paus das mocas quando dão três voltas à capela.
Os bombos e pandeiretas são de fabrico local. Nada é importado, a não ser algum penetra que traga de fora algum artifício, mas não é a mesma coisa. O som tem de ser da serra, dos montes, num plano primitivo. Ali se alinham os de Miguel Choco, de Venda do Cepo, de Rio de Mel, de Vila Novinha, de Carapito, de Rio de Moinhos e todos os que habitam por terras ao redor da serra do Pisco, herdeiros e estirpe daqueles combativos que enfrentaram os governos para que não lhes tirassem os baldios, como narra Aquilino Ribeiro em Quando os Lobos Uivam. Ao todo gente de Trancoso, Aguiar da Beira e Sernancelhe.
Cada malta tem a sua ordem de entrada, a compasso de festa, com o chefe à cabeça e a exibir no alto a sua moca. A seguir vêm os bombos, as flautas e as concertinas, alguns adufes, reque-reques, consoante a malta, identificada pelo seu estandarte. E o S. Brás, protector contra as doenças e problemas de garganta, ficará satisfeito por ouvir de tantas gargantas os vivas aos casados, aos solteiros e à união das maltas - só não ouvirá aos políticos e aos governantes, porque não há razão para isso e não fazem lá falta alguma.
Foto de Agostinho Sanches, do livro "A Festa dos Montes" de Julieta Silva

Só há interrupção durante a missa, a que se seguem as merendas nos talhões destinados a cada malta. Os convivas e os penetras e os moinantes são aceites, partilhando entre todos a comida e a bebida, no chão espalhadas sobre as toalhas. Depois do almoço recomeça a zanguizarra, onde muito naturalmente os bombos são os reis da chinfrineira.
E falta referir a prática de se dar volta à capela com os rebanhos. Hirta e firme se encontra a grande parte dos intervenientes, só claudicando lá para o tarde, depois de bebido o tintol a passar da marca. Fechado o pano, lá seguirá um ou outro aos tropeções com a mesma sanha dos que cantavam:
"Se o vento não sopra
E o mar não zurra,
Então quem é que me empurra?"
O São Brás dos Montes é uma reunião de clãs. É uma reunião onde se compete em termos musicais numa opulenta sinfonia e em aparato de costumes. Foi sinal de ajuste de contas, em tempos passados, isso foi. Todavia, arraial onde não houvesse balbúrdia e bordoada seria então considerado romaria?

(22-1-2020 - Acrescentei Rio de Mel no texto, pois o meu amigo Paulo Coelho fez-me essa observação)

2 comentários:

  1. Caríssimo Santos Costa,
    O Santo António da Neve, além de fornecer as reais goelas de um gelo puríssimo,acolhe anualmente alguns moinantes das serranias em redor.O encontro dos povos serranos é a 13 de Junho.Aproveitam o santo para medir forças. "No Santo António mas vais pagar!".Os de Vilarinho eram os melhores. Bordoada de criar bicho.Na lombaça dos da Lousã.Eu próprio subi as serranias íngremes do Franco.Não com o cajado, mas acompanhado pelos melhores "concertineiros" da região.Uma festa junto aos poços de neve. A mil e alguns metros de altitude.
    Desconhecia a romaria de São Brás do Monte.
    Grande Abraço.

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    1. Caríssimo Amigo

      É certo que se podem (ou devem) manter as tradições, sem que a parte mais "dura" prevaleça, até porque os tempos são outros e não há necessidade para tais ajustes de contas, à revelia dos circuitos da Justiça, a quem incumbe redimi-los.
      Esta festa em particular - tirando o caso do saldar das contas através das pugnas - parece-me relembrar os povos primitivos, numa romaria que teria o seu quê de justificável num culto pagão, aproveitado pelo culto religioso cristão.
      A festa tem, todavia, um fundo de competição, de disputa: as maltas tocam para se evidenciarem e sobreporem as suas qualidades às restantes.
      O jogo do pau era mais para o "Malhadinhas" e eu, quando era novo, salvo participar num "combate" de artilharia entre os de S. Romão e os de Seia, nas faldas da serra da Estrela, ao poder de calhaus que mandávamos uns aos outros, tendo como fronteira a terra de ninguém o sítio onde estava o pinheiro manso, não mais entrei nestas guerras, porque quando entrei pensei em proteger-me e pedir intimamente para não atingir ninguém. Era um mau "soldado".

      Um grande abraço

      Santos Costa

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