No século X, Abdul Kassem Ismael, o Grão-vizir da
Pérsia de então, cada vez que resolvia sair de viagem, fazia questão de levar
com ele a sua biblioteca, toda ela, com cerca de 120 mil volumes, distribuídos
por 400 camelos.
Recupero esta perplexidade histórica para falar do
“segredo de justiça”, o qual, desde há uns tempos a esta parte, me parece nada
secreto (a não ser que seja de Polichinelo) e muito menos de Justiça, porque
fere a legislação que o determina.
Pasmo! Re-pasmo! Tre-pasmo!
Sem me querer imiscuir ou desculpar os visados –
que supostamente estarão inocentes até se provar a culpabilidade – fico
perplexo quando os vários meios de comunicação social trazem para a praça do
julgamento popular magistrados, juízes, polícias e demais pessoas em que se
supõem faltas mais ou menos graves, como se colhessem os acórdãos dos trânsitos
em julgado. Pior ainda, sem que a eles tenha sido notificado o meio de defesa
ou inquirição. Posto o estendal na praça pública, logo os juízes pedâneos de
café apontam os dedos acusadores e as sentenças, sempre ao arrepio do princípio
“in dúbio pro reo”, onde nem sequer há réu. Li algures que isto significa o
recuo para outro princípio (que já teve fim, felizmente) de “in dubio pro
societate”, que é “carta branca para a volta do sistema inquisitorial”.
Julgo mesmo que nas fases de inquérito e de
instrução, os responsáveis devem fazer como o grão-vizir: levar consigo os
processos, para evitarem a espionagem e a interpretação livre para alvoroço do
que está a ser averiguado. E que assim aumentem as consultas a astrólogos,
tarólogos e adivinhos, para se fazerem manchetes que visam manchar antes de
julgar. Sem ocultar os casos julgados ou a julgar, deixe-se ao controle do poder
judicial – e não do político de facção – o exercício da sua conduta, para
evitar que os prevaricadores e os seus acólitos queiram levantar as vestes da
icónica deusa grega Thémis ou da latina Ivstitia, para saber o que está por
baixo. Com dúbios intentos, “voyeurismo”, e para julgamentos com menos moralidade
e mais marmeleiro.
Não quero dizer com isto que se macule a liberdade
de imprensa, porque esta deve informar. Informar, sim, repito mesmo, mas com
verdade e isenção, sem cuidar de imprimir as parangonas para pilhéria de uns
tantos bacocos e escoamento das edições.
Ainda pasmo nas vozes que fazem coro com esta
caramunha, que são de comentadores, juristas e demais gente que está por dentro
do sistema, que não eu. Se há algo a corrigir, corrija-se, mas sem deitar por
terra este primordial edifício da Democracia. Se há faltas, desvios, atropelos,
averigúem-se e sejam conduzidos à barra, sem alaridos ou com condenações
precipitadas. E pensem que, mesmo com a lei lida e corrida, não haverá juízos
iguais nas decisões; para isso, lá estão os recursos, a Relação e o Supremo,
que nem sempre estão em consenso de decisão, cabendo ao último a instância
final. E também, como diz o povo, “não há capuz por mais santo em que o Diabo
não possa meter a cabeça”.
Alguém está interessado, para ocultar outros casos
mais obscuros ou outros que o poderão vir a ser, em denegrir os juízes,
apontando para mais alto, colocando em dúvida distribuições de processos, acórdãos
e legitimidade de quem os profere, o que interfere na honra dos próprios e da
própria Justiça.
Não estou a defender A ou B, nem em apelar para alguma
máxima que possa dizer que os juízes estão acima de qualquer suspeita e da lei.
Elevo o primórdio do bom senso, cujo está a faltar por aí, às vezes com
propósitos que ignoro.
Lembrem-se que se começam a comemorar, este ano, os
primeiros andamentos que conduziram à Constituição (é o segundo centenário) e
que, logo após, ficou consignado, à custa do primeiro Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça, a separação dos poderes de quem julga e de quem governa.
Parece-me que, no aproveitamento desta onda populista e juridicamente popular/pedânea,
se quer tutelar e submeter a independência dos juízes. A ver vamos… como diz o
cego! E o mais que certamente soará.
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