A pedido de um Leitor e Comentador deste blog, segue o seu texto...
A REFORMA
Autor: Luís Rente
A aposentação há tanto ambicionada,
finalmente, chegou.
Depois de uma carreira
profissional de mais de 35 anos em que desempenhara quase todos os cargos e
tarefas, chega ao fim esta fase da vida que teve algo de comparável com o múnus
sacerdotal. É-se professor vinte e quatro horas por dia, para aqueles que
entendem que o docente tem que ser um exemplo de comportamento e atitude cívica
que não lhe deixe “telhados de vidro” que podem ser usados posteriormente em
seu prejuízo. “Educar pelo exemplo” diz-se agora com grande ênfase.
A fase final foi
verdadeiramente penosa. Não pelo serviço docente, propriamente dito, mas pelas
responsabilidades anexas que a superestrutura ministerial atribui aos
professores. Antes de mais, a carga burocrática que cada turma ou cada aluno
carrega consigo (relatórios, registo de contatos, avaliação e justificação da
mesma, …) mas também a atitude quase persecutória de certos encarregados de educação,
da pesporrência de alguns colegas, à atitude pouco colaborante de alguns
auxiliares de ação educativa. Acresce o fato de ter vindo a lume uma profusão
de medidas legislativas na área de concursos, de procedimentos administrativos,
da organização curricular, da regulamentação dos apoios aos alunos com Necessidades
Educativas Especiais que, só por si, se tornaram um fator de perturbação da
vida quotidiana da escola. Por último, as alteração ao modelo de gestão, que
reintroduziu a figura do antigo reitor, repristinado na pessoa do Diretor,
quase sempre um ex-colega agora investido de novas funções sem que lhe tenha
sido proporcionada, na maior parte dos casos, qualquer formação específica (gestão
financeira, liderança, resolução de conflitos, planificação por objetivos) – “não
peças a quem pediu, não sirvas a quem serviu’’
Afirmam os teóricos que
as reformas em educação se repercutem no prazo de uma geração. Ou seja, as
alterações de fundo fazem sentir-se passados cerca de 25 anos. A grande cesura
na sociedade portuguesa (sistema educativo, incluído) acontece com o 25 de
Abril, data a partir do qual se instituiu o atual regime democrático,
Recorde-se que os grandes objetivos dos capitães revolucionários se
sintetizavam nos três D’s - Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Os dois
primeiros concretizam-se na curta duração (eleições livres e nova Constituição
para o primeiro D; independência negociada com os movimentos de libertação dos
territórios ultramarinos, para o segundo). O terceiro D revelou-se mais difícil
de alcançar sendo tarefa de longo prazo, pois desenvolvimento encerra um
conjunto de quesitos que só a longa duração permite alcançar aí se incluindo, como
pressuposto básico, a educação enquanto fator essencial ao progresso dos
restantes setores da vida comunitária.
Refiro-me à
universalização do ensino (a par da saúde, lembre-se).[1]
Para implementar tal
desiderato na educação era preciso reformar em três aspetos pilares do sistema:
reformular escolas, conceber novas metas educacionais e programas curriculares,
recrutar professores. Neste último aspeto se encontrava o busílis da questão.
Os dois primeiros tinham solução, assim houvesse dinheiro para a arquitetura e a
engenharia civil e para pagar as equipas de programadores curriculares. Os professores
demoravam anos a formar e era urgente recrutar, “rapidamente e em força’’[2].
Entrei nesse rebuliço
aos vinte anos, com duas saídas precárias: para o serviço militar e para uma
experiência no setor do comércio. De ambas não me ficou grata recordação - da
primeira porque sempre tive uma atitude de repulsa por uniformes (fardas,
batinas e batas); da atividade comercial (vendas) pelo ambiente algo fétido que
se vivia na concorrência desleal, que “luvas” e negócios rasteiros ajudavam a
criar, ou a cupidez de clientes e colegas potenciavam.
Decididamente, a escola
era ‘’a minha praia’’. Avancei pelos Educação Física, uma área ‘’ad contrário’’ da minha
personalidade. Compensava essa inabilidade com uma relação pedagógica
pró-ativa, buscando os pontos fortes de cada aluno a fim de potenciar cada um
desses facilitadores ao mesmo tempo que postergava para segundo plano os
opositores que julgava serem prejudiciais ao desempenho de cada um.
Na fase final da
carreira senti que era tempo de enfrentar novos desafios, onde pudesse aplicar
de forma mais efetiva a minha apetência para o estudo minucioso da legislação
que regulamentava o sistema educativo. Acresce a isto o fato de, depois de uma
sacrificada licenciatura em Filosofia, na Universidade de Coimbra, ter surgido
a possibilidade de frequentar um Mestrado em Ciências da Educação, na
Universidade Clássica do Porto, com o qual fico com a especialização em
Educação Especial - um investimento com duplo benefício.
Foi aqui que permaneci
nos últimos quinze anos. Sempre escapando aos casos mais difíceis, escudando-me
em horas noturnas, cursos profissionalizantes, cargos de representação e a
asserção, sempre pertinente, que o Professor de Educação Especial não pode (não
tem que) dominar as matérias curriculares reservando-se para a aplicação de
técnicas especiais de ensino/aprendizagem – alguém escreveu que, na maior parte
dos casos, não se trata de problemas de aprendizagem mas sim de “ensinagem”.
O primeiro mês da nova
condição de aposentado (até me custa a dizer) passou-se num ápice. Pensava
dedicar o tempo a arrumar papelada dispersa e reorganizar a disposição dos
livros nas prateleiras da minha biblioteca. Nada disso aconteceu. Foi um lapso
de tempo de autêntica lazeira embora gostasse de pensar que tinha sido um
período de lazer.
Os dois meses seguintes foram mais profícuos
no que diz respeito â tal tarefa prioritária a que me propusera – selecionar e
dar arrumação a montes de papéis soltos, resmas de pequenas capas com temática
variada recolhida em múltiplas ações de formação, encontros profissionais,
reuniões politicas e sindicais. Era a função em que me embrenhava da parte da
tarde, por vezes após uma ligeira “siesta” -
máscara e luvas e, no final, um
duche retemperador. A manhã era dedicada à leitura dos jornais, um café
comentado com alguns amigos ou ex-colegas, compras pontuais no supermercado e
preparar a refeição familiar.
No terceiro mês
começaram os primeiros sintomas de que algo não corria bem, no meu organismo –
falta de energia nas pernas, pouca força de braços, cansaço generalizado. Terá
sido daqueles trabalhos forçados? Nunca foram exercícios excessivos de
exigência física. Antes pelo contrário. Ficava parado a reler textos antigos
donde resultava muitas vezes alguma admiração comigo próprio: como conseguira,
naquele tempo, escrever coisas tão complexas e bem escritas??!! Sínteses,
recensões, resumos de obras completas, ensaios. Mas tinham sido escritos por
mim de facto. “A necessidade aguça o engenho” é um provérbio português com
plena aplicação.
Começa, então, o meu
périplo pelas diversas especialidades médicas. Primeiro foram os problemas
intestinais e correlativos hemorroidais e aí vou eu a caminho de um
proctologista famoso. Depois coração. Ecografias, Holter, prova de esforço -
tudo normal na área cardíaca. Ao neurologista consultei por causa de umas dores
de cabeça, pontuais e breves, em pontos diversos da calote cerebral - nenhum
problema visível.
Todos me recomendavam
alguma dieta. “Perder dez quilitos não seria mau” - ouvia repetidamente.
Inicia-se, então, a
saga ciclista. Procurei travar conhecimento com uns amigos dos meus primos que
praticavam ciclismo. Faltava, porém, tomar uma decisão importante: escolher
ciclismo de estrada ou de crosse. Depois de ouvir diversas opiniões e consultas
na net, avanço para a pesquisa dos preços de cada uma das modalidades, pormenor
não despiciendo nesta minha situação de reformado - aposentado, esqueço-me
sempre! E aí quase caía de costas. Os preços eram verdadeiramente proibitivos,
era um investimento muito acima das minhas projeções. Andava eu com estas
elocubrações quando a minha sócia me deu uma ideia genial (elas, de vez em
quando, também têm algumas ideias brilhantes):
- Oh Manel! Por que não
comprar uma bicicleta estática. No Verão pões na varanda, à sombra. Uns dias
viras-te para cima e noutros viras-te para baixo. Assim vais mudando a
paisagem. No Inverno, recolhes a bicicleta na sala, em frente da televisão e vês aqueles programas ás vezes
interessantes, que fornecem sugestões culinárias que podes ir aplicando.
(logo vi que a ideia
tinha que trazer consigo algum lado prático que haveria de me tramar)
O proctologista, no
entanto, alertou numa consulta de rotina:
- Olhe que as
modalidades menos recomendadas para quem tem problemas na fase terminal do
intestino são o ciclismo e a equitação.
Pensando bem, fazia
todo o sentido mas nunca tal me passara pela cabeça. Surgiu então outra
possibilidade, o ténis de mesa, aproveitando o facto de dois colegas, também
aposentados, terem semelhante gosto pela modalidade e assim, passarmos uns fins
de tarde desportivos e de cavaqueira.
Cada dia que passava
mais se enraizava a ideia de que os tais problemas de saúde eram meramente
psicológicos. Era necessário dar um rumo à vida, dar significado a cada acordar
matinal, encarar a nova situação com otimismo e evitar o “discurso da lamúria”
tão em voga na chamada sociedade civil. E tirar sentido às teorias negativistas
que previam tempos catastróficos para os aposentados para quem se previam
depressões, negativos estados de alma, tempos de “choro e ranger de dentes”.
A esta narrativa
otimista faltou acrescentar um elemento fundamental: a companheira de mais de
35 anos, que lhe dispensou todo o apoio e incentivo e o ouvia com paciência nas
lamentações dos dias maus e na euforia dos dias de maior otimismo.
Outro motivo de orgulho
era uma filha única, muitíssimo inteligente, que seguira estudos na área da
psicologia, fizera cursos avançados na Europa, que culminaram com um pos-doc
numa das mais prestigiadas universidades parisienses. A parte afetiva ou
amorosa da pequena é que não corria lá muito bem, fruto porventura, da
excessiva dedicação ao estudo e ao trabalho. Tivera já duas ou três
experiências, algumas com um ar já adiantado, mas nada permanecera por tempo
aceitável.
E assim se vão escoando
os dias, divididos entre a culinária caseira, o acompanhamento dos futebóis, as
tentativas quase sempre goradas de intervenção na jardinagem, o rever filmes
antigos (ai o Canal Memória!!) e outros atuais “pescados” na net.
E pronto! Como dizia
uma das nossas atuais figuras públicas de maior exposição: “É a vida”
[1] Uma canção da época, de autoria
de Sérgio Godinho, tinha como refrão: “A Paz, o Pão, Habitação Saúde, Educação,
só há liberdade a sério quando houver liberdade de decidir, quando pertencer ao
povo o que o Povo produzir….”
[2] A expressão atribui-se a António Salazar num discurso proferido no
início da guerra colonial.
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