terça-feira, 9 de outubro de 2018

MANUEL "DELIRAM-SE"


Nunca cheguei verdadeiramente a saber o fascínio que me despertavam aquelas humildes criaturas que frequentavam a taberna de meus pais. Talvez o certo encanto que emana das pessoas simples, cujo passadio diário não ia para além de uma malga de sopa, uma boroa de antevéspera e a água da fonte. Era eu rapazola, acamaradava com esta espécie de réprobos e abandonados da fortuna, de que me lembro com particular carinho - como se ainda o estivesse a ver - o Manuel "Deliram-se". Como raio caiu uma alcunha de verbo, ainda por cima de pretérito, para mais na terceira pessoa, a uma criatura tão singular e solitária como a daquele velho, é coisa que nas andanças deste texto, vos falarei. Era magro como um espeque de feijoeiro; penava com um trajo bastante puído, roto de casaco, calças abertas nos joelhos e umas botas que arreganhavam como aligátores. Nos pés, que não viam meias nas quatro estações, as borbulhas eram do tamanho de tremoços grados. As calças eram largas e curtas, fazendo com que as pernas magras oscilassem no pano como badalos em boca de sino. Tinha um feitio descaroável, arredio e pouco sociável, é certo, mas quando sorria com a boca desdentada, posto que grosseiro de feição, era a estreme bonomia de uma alma cândida sem culpas em cartório.
Era solteiro, posto que feio como Esopo seria, sem cheta para cativar derriços e, segundo as más línguas, virgem como um querubim. O queixo proeminente e pontiagudo, realçado por uma boca sem sombra de dentes e fechada para dentro como cloaca, dava-lhe um ar estranho e meditabundo, a que se somava um fungar crónico e uma voz cavernosa tão perceptível como o mandarim. Logo, bom de ver que nem donzela ou marafona se perdiam por tão bronca imagem.
Sentava-se no balcão corrido da betesga, sorumbático, horas a fio a fumar um “Kentuchy” ensalivado. Por vezes, era hora da mesa posta, lá ia minha mãe: - “Ó Ti Manel, janta com a gente? Saco vazio não se tem de pé!”
Era orgulhoso e não pedia. Para dizer sim, assentia com a cabeça e ficava à espera de acudir às súplicas da solitária. As refeições teriam sido, ao longo da sua vida, um dilema: só em sonhos poderia sentar-se à mesa e servir-se de bons capões, de carne retirada ao chambaril, de boa chouriça de fumeiro ou presunto da salgadeira. Para o ouvir, oferecia-lhe eu boa merenda. Às vezes, meio quartilho de tinto, que via sumir como se descesse por cale de moinho, mesmo um cálice da "rija", emborcado com igual deleite e rematado com um "ah!", que dava gosto ouvir: - “que lhe preste, ti coiso!”
Porém, se o queria assanhado, posto que de feitio descarolável, tratava-o (como o faziam todos, aliás) pelo abreviado “Liram-se”. Sabia que a sensibilidade do velho debitaria fatalmente um vespeiro de obscenidades. A etiqueta não era o seu forte, estivesse quem estivesse, lá saía o chorrilho. Era um desbocado, de facto!
Se falei na alcunha, resta-me ir à sua génese. Era ele catraio, deixou-o a mãe em casa, na altura em que na cozinha - por ser dia especial - rechinavam na panela de ferro duas mãos cheias de feijões e uns nacos de carne a boiarem na água da cozedura. Famélico como sempre foi, o rapaz respondeu ao motim do estômago, para mais acirrado com o rescendor que vinha da panela ao lume. Se esperou ou não pelo apuro da culinária, ninguém cuidou em saber, tão só que passou ao estreito os feijões e toda a carne.
Quando chegou a mãe, porventura tão penada de alimento como ele, dando conta que na panela apenas se encontrava a água, chamou o filho a capítulo, disposto a zurzi-lo de impropérios e de bordoadas.
– “O 'nha mãe: a carne comeu-a o gato!”
 - “Ah, meu desgraçado, meu desinfeliz! E os feijões?”
- “Os feijões?! Os feijões deliram-se.”
Há que mundos teria saído aquela desculpa! Até à cova a havia de carregar, como anátema do seu alvedrio. A fome, essa, à compita com a alcunha, jamais o abandonaria até ao quebrar abrupto da vida, se deleite não constituiu, para esta triste criatura, tal transe.
Apenas são eternas as coisas que duram na memória e o Manuel “Deliram-se” teve a desdita de nascer num mundo que veste os já vestidos e despe os nus.

2 comentários:

  1. Texto extraordinário! A minha homenagem ao escritor, que em admirável estilo literário me deu a conhecer tão comovente personagem.

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  2. Olá Lino

    Muito gosto de te ver por aqui, tu que és um dos grandes mestres da Língua portuguesa, conforme o provas nos teus sempre actualizados e pertinentes blogs.
    Agradeço-te o elogio, porque sei ser ele franco e que não vem no sentido de me envaidecer.
    Relativamente ao "homenageado", faz parte de um rol de pessoas que conheci nos meus tempos de infância e juventude. Todos eles eram pessoas simples, autênticas, daquelas figuras que passam como meteoros, apagadas na existência e nos registos das celebridades locais, mas que me fascinaram e continuam a encantar.
    A memória tem destas coisas: retém os momentos, os convívios e os rostos, de tal sorte que cria uma espécie de máquina do tempo, capaz de me transportar, quando escrevo sobre esta gente, para o tempo e espaço em que os julgo à minha beira.
    Posso dizer-te que tenho deles retidos na memória os rostos, que desenhei.
    Os meus pais tinham uma mercearia e taberna. Com os clientes, que eu via no tempo das férias escolares, aprendi muito e a eles lhes devo esse tanto. São lições que eu não paguei, se bem que alguns deles - como é o caso deste Manuel - tivessem esporádico apoio alimentar gracioso, por parte de minha mãe, e algumas atenções do género, da minha parte.
    Como vês, para além do outro blog, decidi abrir este espaço de crítica, de memória e de elogio, de que não choro o tempo dedicado.

    Abraço

    Santos Costa

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