domingo, 14 de outubro de 2018

O "GRILO"



Independentemente do meu bom ou mau aproveitamento no colégio da Via Sacra, em Viseu, as férias tinha-as por conta do balcão da mercearia e taberna de meus pais. Aquele apostulado abominável deixava-me, frequentes vezes, sozinho entregue ao negócio e a um rádio de válvulas que me mitigava o tédio, que eu punha na máxima potência quando tocava a música da minha preferência, o que levava a freguesia a dizer que eu só gostava música de “caldeiros e guitarras de chinfrineira”. Reconheço hoje que, em tal função, conheci muito tipo de gente, desta humilde de porte e directa de linguagem, sem protocolos ou fingimentos, que me levava quase sempre, mais do que atender às suas necessidades, mitigar as minhas com os seus ensinamentos e as suas histórias.
Entre uma aldeia e outra, com paragem demorada nos povoados, percorria um pobre de Cristo, com uma carripana de mão, o itinerário da venda do peixe, a maior parte das vezes sardinha ou carapau. Era um velhote cheio de rugas, baixo e atarracado, de feitio birrento e entremetido, quando não taciturno como uma dorna vindimeira. A aba do chapéu virava-a para cima, à laia dos pioneiros da Nova América, falava com voz rouca e, quando parava a carripana, sentava-se num dos varais a berrar pelas freguesas. Julgo que o seu nome era Carlos, mas a alcunha ficou na memória - o “Grilo". Não trazia mais do que duas ou três caixas de um peixe amolecido pelo sol, afundado em sal e picado por um milheiro de vespas. Valia ao pobre do homem uns sacos de serapilheira, colocados por cima do peixe, que só destapava para exibir à freguesia os exemplares mais frescos e "com sangue na guelra".
Parava invariavelmente à porta do estabelecimento que meus pais exploravam e tinha sido de meu avô. A troco de um cálice de aguardente, confidenciava-me aventuras de outros tempos, credíveis ou inventadas, nunca cuidei em apurar. Falava pausadamente, abria grandes parêntesis de silêncio, por vezes exibia uma navalha que já tinha aberto "ao verde" a muito sacrista. Eu não acreditava e ele ria quando eu lhe dizia que teria aberto “ao verde” de muita melancia. Quando pressentia o clímax do meu interesse, calava-se, apontava para o pequeno cálice vazio e esperava que eu lho enchesse. Se queria o final da história, vá de levar o combustível à conta de perdas e danos. Enfim, era a sua propina, não fosse ele o "Grilo"!
Para provar a excelência da sardinha, emborcava uma, mesmo crua, fazendo-o com apreciável deleite. De tanto o ver fazer aquilo, um dia tomei fôlego para fazer o mesmo, mas sempre com o gorgomilo a querer saltar na garganta. E para não deixar minguados os meus créditos, sobre a dita ementa, um cálice da rija. Ele assentia com a cabeça, fechando o olho direito, à laia de querer dizer - "temos homem!"
Das muitas histórias que lhe ouvi, uma em particular mereceu-me registo, de que fiz uso num livro publicado anos depois. Em duas penadas, aí vai.
Quando novo, o "Grilo" e outros da mesma tropa fandanga costumavam tomar de assalto o meloal de um velho pernóstico e sovina lá da terra, o qual pensou resolver a situação vigiando o dito meloal, de dia e noite, com um bacamarte ao lado. Colocou na sorte de terra uma cabana, destas de colmo que se transporta ambulante sobre uma padiola. Viessem lá os marmanjos aos melões! Chumbo para cima, ora pois!
Aconteceu que a turba acometeu quando menos esperava, precisamente numa noite em que se deixou dormir na cabana de colmo, de tal sorte que os roncos e assobios se ouviam à distância. Fluidos e rápidos, os flibusteiros cortaram quantos melões puderam levar. Andavam com passo raposeiro, mas nem seria preciso, pois o homem, que não era de pau e não conseguia ficar todas as santas noites velando, ferrava bem o galho.
Depois de servidos, de que se lembraram os marotos? Tomaram conta dos quatro varais da padiola onde se encontrava a cabana, tão cuidadosos como se fosse a procissão da orago, levando-a até à beira de um poço existente na propriedade, deixando a abertura do refúgio na direcção do abismo de água. Logo começou a última parte do entremez, desatando todos à uma em lagaré danado. Está bom de ver que o inusitado chinfrim tinha de forçosamente despertar o proprietário do meloal, o qual berrava enquanto se desembaraçava de entre as mantas e deitava mãos ao bacamarte. Saiu para fora com ímpeto, com a arma já pronta a fazer fogo; porém, não topou chão debaixo dos pés e chapuz ! Tinha acabado de sair da arca de Noé.
Narrativas como esta faziam as delícias de um jovem estudante, como eu era então. Algumas surgiam nos narradores como simples bravata, outras traziam foros de realidade; nenhuma delas eu recebia por banalidades. Na sua textura, na sua simplicidade, nelas havia muito do povo, da puridade de quem é humilde mas não se deixa humilhar. Também a matreirice, é certo, desta lusa gente, em particular a da nossa querida Beira, aferida desde antanho pelas vicissitudes que nos fizeram passar essa praga de romanos, dos mouros, dos castelhanos, franceses, espanhóis, mais recentemente das troicas e o diabo a quatro.

5 comentários:

  1. Com as devidas adaptações poderia ver-me retratado no 1º parágrafo deste seu magnífico texto. Também eu passava as minhas férias no café enquanto os meus pais saíam para tarefas agrícolas em Carnicães. Durante a tarde o movimento era pouco , não havia televisão,e a minha escapatória eram as leituras, consumindo tudo aquilo que me “surgia ao bico” – desde os livros de “cóbois” até à coleção “6 balas” e, de seguida, autores como Camilo, Eça ou Aquilino. Sem qualquer critério.
    Assinávamos o jornal “O Primeiro de Janeiro”, que recebíamos no dia seguinte ao da sua publicação, no Porto. Aí saía diariamente o “Zé do Boné” uma tira de BD, humorística, um problema de palavras cruzadas, que, de tão repetitivo, resolvia rapidamente e uma nota diária, algo misteriosa para mim, intitulada “O caso da Herança Sommer”
    Portanto, as férias começavam no dia 7 de Outubro, data do início das aulas. De tal maneira que a primeira vez que fui à praia aconteceu no primeiro fim de semana em que fiquei em Coimbra, já aluno do 1º ano da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
    E já agora, que vem a talho de fosse, diga-se que a primeira vez que fui ao cinema, foi no Cine Teatro da Guarda, para onde fui estudar no 6º ano. O Filme, português, intitulava-se “A Maluquinha de Arroios” protagonizado por uma atriz tórrida de seu nome Alina Vaz (se não me falha a memória)

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    1. Caro Amigo

      Temos em comum essa actividade paterna e, por incrível que pareça, as mesmas primeiras leituras de entretenimento intelectual (digo assim), que foram as colecções do "faroeste" em livrinhos ou cadernos de sessenta e quatro páginas, tais a "6 Balas", "Cow-Boy" e "Shane"(mais tarde, havia de escrever para esta última com um pseudónimo americanizado, Saint Coast).
      Da literatura mais cuidada, lá se encontrava a Calouste Gulbenkian para mim, quando estudei em Viseu, através de uma carrinha Citroen, em regime itinerante, que eu frequentava em Abraveses.
      Veja bem: em Viseu, por ser cidade, não havia carrinha itinerante, pelo que andava aqueles quilómetros todos, à chuva e ao sol, para requisitar livros.
      As mercearias e tabernas tinham sempre jornais. Na dos meus pais aparecia "O Primeiro de Janeiro" e "O Século", onde eu lia e via "O Príncipe Valente" na página dominical, a cores, do primeiro, e "Steve e Roper" em tiras diárias de BD no segundo.
      Não lamento nada daquilo. Se acaso eu tivesse uma "tablet" ou um "smartphone", provavelmente eu não seria capaz de redigir uma carta à namorada.
      Quanto à Maluquinha de Arroios, esta obra foi escrita para o teatro por um oficial combatente da I Guerra Mundial, André Brun, autor de "A Malta das Trincheiras". Curiosamente, embarcou para a Flandres no mesmo barco de alguns dos combatentes de Carnicães, como António dos Santos, Armindo de Almeida Ribeiro, João da Cruz Pereira, José Miquelino e Manuel Bernardo.
      Agradeço-lhe mais esta sua visita.

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  2. O RESINA
    O Sr. Alfredo Resina constitui-se como uma das mais remotas memórias da minha infância. As particularidades das suas características faziam dele uma figura importante do microcosmo social da vila do Trancoso do início dos anos 60. Dir-se-ia, em linguagem atual, um verdadeiro “cromo”.
    Desde logo, pela sua compleição atlética tipo Jô Soares, conhecido humorista brasileiro, granjeara a fama de “bom garfo”
    Era um sportinguista ferrenho com especial ligação à modalidade ciclismo, O Sporting tinha nessa altura, uma equipa de ciclismo muito competitiva da qual chegou a fazer parte o famoso Joaquim Agostinho, para muitos o melhor ciclista português de todos os tempos. A Volta a Portugal em Bicicleta era para ele uma verdadeira festa e sempre acompanhava, por dentro, as etapas que decorriam por esta zona do país. Se acontecia a Volta passar por Trancoso então era o verdadeiro climax, desdobrando-se em iniciativas de apoio à equipa (corredores e restante staff) do seu Sporting.
    A sua atividade económica desenvolvia-se numa loja/armazém situado na esquina em frente ao Clube Trancosense (na altura designado “Clube dos Ricos” em contraponto com o “Clube dos Caçadores” que funcionava numa das ruas estreitas à direita na Corredoura, quem entra pelas Portas d’El Rei)
    Era a loja dos feijões. Como se vê pela designação era uma loja especializada no comércio de feijões, nas suas diversas variedades e afins – grão de bico, tremoço, etc.
    Na fase final da sua vida de comerciante, porque a atividade já não seria lucrativa, passou o negócio para uns concorrentes da área sedeados na aldeia de Minhocal (Celorico da Beira), gente mais jovem com outra destreza e outros meios de exploração do comércio.
    Por esta altura, o Sr. Alfredo, dispunha-se a ir ajudar os novos proprietários na escolha e seleção dos feijões e na preparação do dia de mercado, em Trancoso. Como não tinha meio de transporte, à quinta feira após o almoço, ia de boleia com o meu pai que se dirigia a uma quinta que possuía no limite dos dois concelhos, Trancoso e Celorico, numa zona conhecida como “Pereiras” e daí se deslocava para o Minhocal, que dista a cerca de dois/três quilómetros. Ao fim de tarde, lá o traziam de novo (ou ele vinha a pé) para apanhar o transporte para Trancoso. Os dois, o meu pai e ele, ali conviviam um pouco á volta de um copo de vinho e um naco de pão com queijo, ou presunto, ou chouriça, ou …
    Numa dessas ocasiões, decorreu uma cena que ficou para a história. Certamente porque as merendas começavam a ser demasiado frequentes e sempre com a mesma proveniência, à sua chegada, nesse dia o meu pai ofereceu-lhe:
    - Tio Alfredo, vai um copo?
    Resposta áspera do Sr. Alfredo:
    - Você é pior que os do Minhocal. É só copo, só copo, bucha nada…
    Ainda hoje, num círculo restrito de amigos de Carnicães, quando se vive situação semelhante, sempre se repete a frase que ficou: “Tu és pior que os do Minhocal…”. Que logo outro completa: “É só copo, só copo. Bucha nada…” E a risada é geral.

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    1. Ora aí está um comentário que é um autêntico post, pois merece aí destaque.
      Agradeço-lhe sinceramente este maravilhoso contributo, que significa uma colaboração digna e interessante, com a qualidade que o Amigo já demonstrou em livros já publicados.
      Acabei agora mesmo, depois de ler este comentário, a considerar este seu texto como preferência de publicação no corpo do blog.

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