quinta-feira, 27 de junho de 2019

SÓ FALTA EXTERMINÁ-LOS


Já vi esta cena em filmes de terror e em imagens do holocausto, na caça com furão, em reportagens de cerco a elementos terroristas e a retirada à bruta dos animais perigosos das suas tocas. Confesso que me faltava assistir a isto!
Os moradores de um prédio de Viana do Castelo estão cercados em casa, despejados com uma selvajaria que eu não imaginaria ver em Portugal no ano de 2019, tudo isto sob autorização e incitamento das autoridades civis, militares e judiciais. Registe-se, porque constitui vestíbulo de lenda.
Pode lá ser alguém ficar privado de água na casa que comprou e legalizou? Pode lá ser ficar privado de gás e electricidade, se tem as contas em dia? Pode ainda lá ser não arriscar sair à rua sob pena de não regressar? Coisas destas não se fazem num canil, mesmo num daqueles que se querem desocupar para ali construir um supermercado ou um campo de jogos. Nunca visto!
E tudo isto porque um esperto qualquer, que gosta de ver paisagens, e outros mais espertos que aproveitam a esperteza do anterior, decidiram demolir legalmente um prédio que legalmente foi autorizado a ser construído com aquele arbaboiço.
A partir daqui, vale tudo, ninguém está seguro do que é seu, a autoridade merece desconfiança e a justiça é conforme lhe dá, dobrando conforme a polis (cidades-estado na Grécia antiga) do momento.
O Portugal do Quinto Império, vaticinado por Bandarra, Vieira e Pessoa, descambou nestes aleijões da sociedade, onde nem sequer se respeita o próximo como ser humano. E o povo de tal império? Só se empolga com a onda de fervor pátrio quando a Selecção vence, o resto que siga segundo a vontade de quem manda, mesmo que mande mal. Se o sangue luso deu nisto, o melhor é uma transfusão, para mostrar lá fora que não somos como os cafres e ainda parecemos civilizados.
Já sei como isto vai acabar. Os proprietários expropriados acabarão por sair, ainda que não seja pelo próprio pé mas com os pés para a frente. A lei ficará cumprida, o processo transitará em julgado pelo esquecimento, a coisa vem a baixo e todos jantarão descansados antes dos horários das próximas novelas onde nestas, apesar de grandes imaginações, ainda não se viu coisa semelhante, penso eu.
O que nos traz o vento das notícias é que se armou um perímetro de mirones, preparados para emitirem opinião, à guisa de malta em pagode e feira franca, naturalmente acicatados pelo espectáculo e o seu desfecho, quiçá escrutinado pelos assistentes.
Não pretendo saber se as compensações para o abandono dos lares correspondem minimamente ao razoável (embora presuma que não conseguem, nem de longe, tal desiderato), nem sequer tenho em mente e bestunto para ler uma única linha do processo do tribunal administrativo e fiscal (processo trabalhado ao torno, onde certamente estarão lá artigos e mais artigos apropriados ao desejo); nem sequer pretendo saber se a lei que manda fazer aquela barbaridade colide com a Constituição (que tem as costas largas, quando se quer). Para o homem neolítico, a existir aquele colosso, o mais difícil seria demoli-lo ao poder dos machados de pedra, porque a expulsão estaria facilmente resolvida.
O que prenuncio é que mais uma vez se confirma a máxima que diz que se fará o que não deve ser feito para se fazer o que convém.
No caso, sobretudo contesto a forma de desalojar. Dos homens-bons da paróquia, sedentos da hecatombe, o que eu gostarei de ver explicado é a forma - esta forma - como se obriga, com tal cerco ao castelo "sarraceno", desalojar os cercados, já ameaçados com processos-crime por não quererem abdicar do que é seu, ainda sujeitos a pagarem indemnização por causarem prejuízo a quem os quer no olho da rua, só faltando fumigar com insecticida ou com fumo negro os escassos habitantes reduzidos à míngua. Segurança privada, polícia e mais força desproporcional está ali preparada para o "assalto", há cordões de segurança onde nem sequer passa um sapo-concho. Água já não têm; comida estão impedidos de receber; o gás e a electricidade foram cortados; houve até um paisano, armado em general de brigada, que resolveu ameaçar os resistentes com derrocadas parciais do edifício; as portas de saída (a não ser que queiram sair, estão trancadas), só espero que um chico-esperto, baseado na lei e no processo judicial (que fará doutrina, decerto), não resolva tirá-los dali – aos “clandestinos” – à bazuca ou a tiros de canhão.
E chamam aquilo Edifício Jardim?! Só se for do Inferno!

segunda-feira, 24 de junho de 2019

ESTAS CATIVAS QUE NOS PÕEM CATIVOS

A senhora Autoridade de Segurança Rodoviária, depois de plantar no jardim mais umas miras de captação de multas, adoptou agora nova especialidade, forjada por algum mestrado em cátedra de esperteza saloia: a de ocultação de estatísticas de acidentes rodoviários. É evidente que é mais uma cativação, tal a do ministro das Finanças relativa às cativações orçamentais.
Esta esperteza faz com que tenhamos algum receio do próprio termo de origem latina. O dito tem vários significados, sendo dois suaves, o de seduzir e encantar, e os outros mais repelentes, como reduzir a cativeiro, subjugar, hipotecar e reter (as tais cativações orçamentais).
Camões optou pela mais suave, as endechas à escrava Bárbara:
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Parece que foi o semanário “Expresso” que descobriu a careca a esta cativação estatística da senhora ANSR, que até aqui conhecíamos como perita em cativação de cartas de condução, dizendo mesmo que "depois das cativações orçamentais de Mário Centeno, surgem as cativações das estatísticas de acidentes, mortos e feridos nas vias rodoviárias”. Eu diria como o ferreiro – e o que diz ele? - é como uma no cravo e duas ao lado.
A coisa foi ao ponto de o “Polígrafo” passar a coisa a pente fino e dar razão ao “Expresso”.
Este apagão vem de encontro a um paradoxo inexplicável: à medida que se cobram, com mais acuidade e persistência, as multas rodoviárias, mormente através dos aparelhómetros de emboscada ao longo das vias, onde só faltam por vezes as urzes e as carquejas, parece que a sinistralidade aumenta, o que me leva a enfatizar o sermão do padre António Vieira: “ou o sal não salga, ou o mar não se deixa salgar”.
Vistos e corridos os autos, desde 2016 que a sinistralidade rodoviária em Portugal está a agravar-se, com mais mortos e feridos graves. Só não vêem isto os pusilânimes, os que não vêem um comboio numa recta e os que preferem olhar para o lado. E importa aqui salientar que o número de mortos e feridos graves pecam por defeito, na medida em que estas estatísticas, feitas pelo método do chico-espertismo e de quem percebe desta poda, apenas contabilizam como "morto" a "vítima cujo óbito ocorre no local do acidente ou durante o respectivo transporte até à unidade de saúde" e como "ferido grave" a "vítima de acidente cujos danos corporais obriguem a um período de hospitalização superior a 24 horas".
No mesmo relatório destaca-se uma tabela com os totais acumulados nos períodos entre 16 de Junho de 2017 e 15 de Junho de 2018, por um lado, e entre 16 de Junho de 2018 e 15 de Junho de 2019, por outro lado. E mais uma vez confirma-se que a sinistralidade rodoviária está a agravar-se: o número de mortos aumentou de 495 para 524 e o número de feridos graves também aumentou de 2.068 para 2.248. Pelo que não restam dúvidas quanto ao agravamento do fenómeno.
A cativação (ou congelamento) de verbas significa a retenção de verbas do orçamento de despesa determinado na Lei do Orçamento do Estado, no decreto-lei de execução orçamental anual ou outro acto legal específico. Sumariamente, no que tange ao orçamento, por vezes justificada em estrofes de pé quebrado, traduz-se numa redução da dotação utilizável pelos serviços e organismos. Na disciplina rodoviária, a coisa ainda é mais refinada: estes números foram ocultados para não prejudicarem as estatísticas que pretendiam demonstrar que a “repressão” através das multas e dos ainda mais gravosos efeitos colaterais dos “pontos” na carta de condução, resultam como um shampô três em um. O insano engodo, que visa a demonstração da causa e efeito da multa-repressão-sinistralidade, se não tiver maior objectivo que o da arrecadação penal fiscal, tem o resultado equivalente à oferta de um bloco de gelo a um esquimó.

Se querem mais evidências daquilo que aqui digo, consultem neste mesmo blog:
http://altas-cavalarias.blogspot.com/2019/01/a-curva-da-bossa-do-camelo.html

segunda-feira, 17 de junho de 2019

A JUSTIÇA TEM SETE MANGAS

O Teodósio preparava a carne com jeitinho sabedor, doseando as partes coriáceas, gordas e de qualidade inferior, com a carne tenra e fresca que costumava aparecer quando o rei fazia anos. Entrava boi duro e estafado de arado e carreta, saía vitela, jurada e trejurada. De dez léguas em redor caíam todas as freguesias na sua chafarica. A carne expunha-se em ganchos de ferro, sem a mínima ordem, ou em tarimbas compostas às três pancadas com meia dúzia de ripas e dois cepos. O veterinário do concelho punha o carimbo em tudo o que fosse carne. Os melhores lombos e bifes estavam-lhe, a título gratuito, reservados. Nos mimos das melhores peças seguiam-se, mas a título oneroso e por ordem de preferência, o doutor juiz da comarca, o delegado, os advogados e os médicos, o presidente da câmara e o chefe das finanças, sendo o rebotalho distribuído ao restante pagode que era, afinal, quem pagava por todos.
O Teodósio e mais quatro homens demolhavam a língua em paleio, tirando devassa das vidas alheias. Foi neste abandono que um perdigueiro entrou, sorrateiro, no açougue. À cautela, sem ninguém lhe estorvar as passadas, cheiricou, bispou à direita e à esquerda: era tudo uma fartura. Sem mais aquelas, mais alceiro que ladrão de esmolas, abocanhou o melhor pedaço de acém composto que estava em cima da banca. Em andar firme, rabo entre as pernas, expediu rápido o atrevido, passando entre os homens com velocidade igual ao dobro da desfaçatez.
— Chô, cão! Larga! Larga!
O Teodósio berrou, os homens berraram.
— Foi bem aviado — notou um parceiro, não deixando de sorrir ao gesto do larápio.
O Teosósio não cabia em si. À força de tanto berrar, rouquejava. O acém que tinha preparado para a encomenda do doutor juiz, tinha sumido. Com a morte na alma, puxou de um facalhão e cravou-o no cepo do talhe. Ali jurou o talhante que levava mais fé no pagamento do agravo que na própria salvação da alma. O dono do cão havia de pagar a carne, e bem paga.
Um dos homens declarou formalmente: — Aquele perdigueiro é do doutor Riodades.
A questão estava no pagamento do desaforo. Cão rouba, dono paga. Além disso, tinha ele boas testemunhas capazes de jurar sobre um volume da Bíblia sagrada.
— O doutor Riodades, que é advogado, não paga. Em casa de letrados e advogados nunca faltam razões — dizia um dos ginjas em tom sarcástico.
— A Justiça tem sete mangas... e cada manga sete capelos — assegurou outro.
Antes que o caso fosse levado pelo olvido, o açougueiro aperaltou-se, na manhã seguinte, para uma conversa com o dono do cão. Veio a criada, um pedaço de fêmea dengosa, que muita má língua jurava partilhar com o patrão cama e mesa.
— O senhor doutor está?
— Está. Quer-lhe alguma coisa?
— É por via de uma palavrinha. Uma pequena consulta...
Volvidos uns minutos, a criada mandou entrar. O senhor doutor estava no escritório.
— Então o que o traz aqui? Algum devedor remisso que quer pôr na senhora justiça?
— Antes fosse... Antes fosse... Eu apenas lhe quero pedir um conselhozinho... uma pequena consulta.
 — Vamos...
— Vossa excelência sabe muito bem que eu tenho um talho donde vivo e tiro os meus fracos rendimentos. Tenho as licenças em dia, pago as minhas contribuições, faço o negócio limpinho, que só Deus e eu é que sabemos. Temos que, ontem mesmo, à tardinha, estava eu de conversa com outros amigos, um cão entrou no talho sem eu dar conta e ripou-me o melhor pedaço de carne que eu tinha guardada para um cliente.
Bem recostado, o causídico tinha cruzado as pernas e acendeu um cigarro.
— Se estava guardada — disse o advogado, soprando ao fósforo — como é que o cão lha tirou?
— Ora, muito bem. Tinha-a em cima da banca, foi só o tempo de virar costas e dar dois dedos de conversa.
— Estou vendo. Agora você quer que o dono do cão lhe pague a carninha, não é?
— É sim, senhor doutor.
— E sabe quem é o dono do cão?
— Sei sim, senhor doutor.
— E as testemunhas que estavam consigo, também sabem?
— Sabem sim, senhor doutor.
— Pronto! O caso está resolvido com duas palhetadas. Você dirige-se ao dono do bicho, apresenta-lhe a conta e narra-lhe o que se passou, tim-tim por tim-tim.
— E o dono é obrigado a pagar-me, senhor doutor?
— Claro que é. Segundo a lei, quem estiver obrigado a pagar um dano, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, compreendendo esta o prejuízo causado e os benefícios que o senhor, como lesado, deixou de receber por não poder vender a carne. Como o dito cão se apropriou da sua carne, o senhor tem o direito à indemnização do prejuízo havido. Chegue-se ao pé do homem e peça-lhe o dinheiro da carne.
Teodósio ia a dizer qualquer coisa, mas arrependeu-se. Depois, consultando o relógio de corrente, exclamou:
— Nesse caso, senhor doutor, tenho de lhe pedir que me pague quinhentos escudos, tal é a conta que o seu perdigueiro deixou no meu estabelecimento quando fugiu com o bocado de acém.
O advogado estarreceu.
— Ainda mais essa ! O meu cão?!
— Sim, senhor doutor, o seu perdigueiro. São boas testemunhas o José Rafael, o pedreiro Alberto Sapo e o «Boas-Novas», que é varredor na Câmara.
— Agora é que você me apanhou! Sempre tem uma lábia... Quanto lhe devo?
— São só quinhentos escudos, senhor doutor, — disse o talhante, esfregando as mãos. — E é por ser para quem é, que a peça tinha passante de cinco quilos.
O advogado procurou a carteira no bolso interior do casaco, contou cinco notas de cem e entregou-as nas mãos do outro.
— Tome. A carne está paga.
O Teodósio contou e, com um sorriso maroto, arrumou as notas no bolso das calças.
— Muito agradecido ao senhor doutor. E com esta me vou. Muito bons dias. Passe bem.
Deu meia volta e agarrou a maçaneta da porta. O advogado inclinou-se para a frente na cadeira e proferiu:
— Alto aí, ó Teodósio! Não se vá já embora, homem. Contas são contas. Os meus honorários são nada mais, nada menos, do que mil escudos! Isto é para toda a gente. Faça favor de pagar a consulta.
O Teodósio, com a cara mais idiota deste mundo, pagou e saiu do escritório batendo a porta.

terça-feira, 4 de junho de 2019

SARDINHAS DOCES NA TVI


Desta vez foi na TVI, programa "A Minha É Melhor Que a Tua", em representação,com outros dois confrades, da Confraria das Sardinhas Doces de Trancoso. Com o traje "de gala", capa castanha, romeira amarela sobre os ombros, medalha e chapéu à beirão, lá falo eu, em breve introdução, da origem do doce. Estou junto ao autor do programa, José Manuel Santos.
Em baixo, na cozinha da D. Rosa, mestre doceira, lá estou com uma sardinha na boca. Não faço por menos...
Certamente não terá Bandarra sequer imaginado o sabor deste doce da sua amada terra, nem pela sua gula seria chamado aos cárceres da Inquisição; nem D. Dinis apresentou esta guloseima nas suas bodas com Isabel de Aragão, aqui em Trancoso, ou tido o ensejo de provar esta iguaria conventual, tão só por ela ainda tardar, no tempo, a instalar-se na urbe trancosana. Em Bandarra não consta sequer o vaticínio, e sua majestade real, com todos os privilégios a seu favor, viu-se privado deste. Nós, porém, somos uns felizardos…