segunda-feira, 25 de novembro de 2019

A CIDADE DOS CINCO “ESSES”


No Domingo, dia 24, o que significa que foi ontem, correspondi ao convite de um amigo para fazer parte, na representação da minha Confraria, num Capítulo e Entronização da Confraria dos Enófilos e Gastrónomos da Beira Serra. O cientista, físico e professor Fernando Carvalho Rodrigues, ia ser entronizado nessa Confraria e dei por boa decisão ter comparecido a essa cerimónia, para ouvir o que ele disse.
Só mesmo o meu amigo Augusto Isidoro, ex-Procurador Distrital da Guarda (Ministério Público), membro da direcção e organizador, me faria comparecer num dia nublado e de chuva, numa cidade a mais de mil metros de altitude e, ainda por cima, a deitar “faladura”. Mais convencido fiquei pelo incitamento do meu colega e amigo Florêncio Nunes, que me julga ser capaz de despachar com palavreado, em mercado de gado, um asno com pulmoeira. E é esse instantâneo do discurso que reproduzo a abrir o texto, enquanto o auditório, que rondaria as sete dezenas de pessoas, se espalhava pelo escadório.
Lá vesti o traje castanho de romeira amarela, com a respectiva insígnia ao peito, e falei no alto da escadaria da Sé da Guarda.
Até aí tudo bem. No entanto, para causar perplexidade nos confrades presentes, afirmei que a Sé que estava ali ao nosso lado não tinha sido mandada construir por D. Sancho I (primeira perplexidade) e que era a terceira da sua série desde que aquele rei resolvera tirar o episcopado da Egitânia para a Guarda.
Para causar mais confusão, adiantei que a cidade, que é conhecida pelos 5 Efes (Farta, Fria, Feia, Falsa e Forte) devia ser no meu entender conhecida pelos 5 Esses (os dos dois Sanchos, primeiro e segundo, e os “esses” das três sedes do bispado).
A coisa conta-se em duas penadas. Talvez para namorar a Ribeirinha da “cantiga de amigo” que temia o tardar do seu amor na Guarda, o nosso D. Sancho meteu uma cunha ao papa Inocêncio III e a Idanha viu fugir a sede do bispado para a cidade mais alta. Assim foi construída uma primeira sé, em estilo românico, de que não restam vestígios. D. Sancho II mandou então construir uma nova catedral no local onde se situa a actual Igreja da Misericórdia, que foi concluída no século XIV. Porém, D. Fernando, ao reformar as muralhas da cidade, deu conta que a Sé ficava fora delas, temendo que os castelhanos aproveitassem subir pela sua torre para entrar nas muralhas, mandou-a derrubar, com a promessa de fazer outra dentro das muralhas. Mas não fez, pelo que D. João I ordenou a construção de nova sé, no local onde hoje se encontra. Mas as obras demoraram muito tempo, talvez porque o seu ministro do tesouro real já lhe enchesse os ouvidos com as cativações, pelo que a Sé da Guarda, conforme a conhecemos hoje, só foi concluída no tempo do rei D. João III, já no séc. XVI, com introdução dos estilos gótico e manuelino. Isto significa que o D. Sancho I, quando foi lançada a primeira pedra – e naturalmente a última – já estava há muito na terra da verdade.
Se a catedral estivesse aberta, teria eu oportunidade de falar dos seus absidíolos e arcobotantes, se tanto fosse a minha memória cabonde para me ajudar. Ou ainda de dar a volta à Sé até descobrir aquela gárgula que tem as nádegas e o cu aberto (um senhor ânus, só lhe falta a vergazinha ao léu) na direcção de Espanha, como a exorcizar velhas disputas.
Talvez os meus amigos se tenham arrependido por pagaram caro o convite. E foi-lhes bem feito, porque não me benzo duas vezes para dar ao Demo as rédeas desta oratória. Embora estribado em factos históricos, fui por esta via da perplexidade, tanto que às vezes, como diz o rifão, ando à procura de “achar sete pés ao carneiro ou asas ao burro”. E eu, que sou um espírito de contradição, podia ter falado em coisas mais elevadas, como aquela com que terminei a oratória, do tipo pilhéria, dizendo que uma das maiores confrarias em Portugal seria aquela que simbolizaria os confrades fugidos aos impostos – "Confraria da Fuga ao Fisco". Apesar de muitos, presumo que, quanto a confrades, não se entronizaria um só. Olha quem!...

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

CADELAS APRESSADAS E AEROPORTOS REVESSADOS


Diz-se pela voz popular que as cadelas apressadas parem filhos tortos e direi eu que a construção dos aeroportos apressados, aliás revessados, sem ser em tempos de guerra, só podem ser paridos por quem torto quer colocar os filhos direitos.
Não percebo nada de ambiente, ainda menos de engenharia e sobre aeroportos nem me perguntem quais são, nem onde e muito menos como. Mas leio, ouço, medito e tenho o direito de pensar – não de julgar – que o novo aeroporto que se quer fazer no Montijo pode trazer “água no bico” e não necessariamente o das aves que vão molhá-lo ao rio.
A ANA e o Vinci casaram para receberem aquela “prenda” de núpcias e vão de vento em popa levantar voo com a coisa. O projecto até é curioso: visto de riba, parece um esquadro ou nave intergaláctica da “Guerra das Estrelas”. Contra ventos e marés, a favor apenas algumas partes gagas da APA, sob o beneplácito do Governo. Em sentido contra, grande parte da opinião pública e a plataforma cívica contra a construção do novo aeroporto complementar de Lisboa na base aérea do Montijo, designada ‘BA6-Montijo Não’ e o bom senso, que não se sabe onde pára. 
Vão mesmo levantar o que teimaram erguer. Já ribomba a pólvora, a maquinaria já aquece os motores e derrete-se o asfalto, ponha-se a mesa do banquete, treine-se a fanfarra e compre-se a fita para cortar. Vamos a isto, ó Evaristo!
Que interessam as preocupações sobre a possibilidade de a pista poder vir a ser inundada no futuro devido aos efeitos das alterações climáticas no estuário do Tejo? Ora, tira-se a água a balde – e pronto!
Que interessam as inócuas 159 medidas da DIA (Declaração de Impacte Ambiental) emitidas pela APA, algumas bem caricatas para um leigo como eu, se a coisa se faz a contento da obra apressada? Pinta-se aqui,  dá-se uma demão ali, arranja-se uma plataforma acolá, paga-se uma portagem em prol das espécies vivas por cada voo – e pronto!
Que importa o escabeche levantado pelas organizações ambientais, uma data delas (GEOTA, LPN, FAPAS, SPEA e A Rocha) que dão parecer negativo àquela coisa, afirmando até que existe uma "pressão política inaceitável" para a execução da obra? Com o facto consumado, acaba-se o pio aos contrários e se ora há pressão, põe-se o pirolito a funcionar e o vapor da indignação sai naquele rodízio – e pronto!
Que interessa a desconsideração pelos habitats e espécies prioritários, bem como áreas protegidas, bem como os riscos de colisão com aves? Pelas áreas protegidas erga-se lá uma alminha, e os bichos que mudem de casa, que saiam da frente senão levam trancada ou chumbada de pressão de ar – e pronto!
Que valor tem saber-se que na região existe o maior risco sísmico e de tsunami do país? Como se trata de um aeroporto, com os aviões no ar, nem sismos nem inundações lhes chegam – e pronto!
Que interessa a poluição sonora e os gases de combustão das “passarolas” a levantar e a aterrar? Para os ouvidos, há por aí muito algodão para servir de rolhão e quanto aos gases, os fumadores nem dão por ela – e pronto!
E pronto, digo eu! Perante esta miséria que vai pelas decisões e decisores deste país, os portugueses que ainda são vertebrados deverão proferir o grito de Cristo no calvário: Senhor, Senhor, porque nos abandonaste?

terça-feira, 12 de novembro de 2019

ENGENHOCAS E GERIGONÇAS


Li hoje uma notícia e o seu comentário que dá pelo título – “À quarta foi de vez, Espanha também tem a sua "geringonça" – onde se refere que o PSOE e o Unidas Podemos chegaram (finalmente) a acordo para a formação de um governo de coligação.
Até aqui tudo bem, não fosse a comparação do jornalista na “geringonça” à espanhola com a dita portuguesa. Primeiro: na “geringonça portuguesa”, os partidos que a formaram com o PS não assumiram qualquer cargo governativo, ao contrário do Unidas Podemos, que requereu a vice-presidência para o seu líder Pablo Iglésias. Segundo: na “geringonça” portuguesa, ao contrário da espanhola, não houve um vencedor claro das eleições, isto respeitante a qualquer dos partidos que a constituíram, enquanto o PSOE venceu as eleições.
A ter que tomar um nome apropriado, a “geringonça” espanhola terá de se chamar “engenhoca”, ou melhor, “artilugio”. Resta saber se tem rodas para andar ou se caminhará em chincolapé. Tanto assim é que, através do borrifador da matemática, não chega para uma maioria absoluta a soma dos deputados dos dois nupciais partidos, sendo necessário recolher calorias e vitaminas de outros pequenos partidários. Tudo como dantes, se é certo que o povo espanhol votou como lhe competia, não deixa de o seu “artilugio” permanecer em estado comatoso “hasta una avería mecânica detener la máquina”.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

ANDAMOS TODOS ENGANADOS


Depois de a organização não-governamental dos direitos dos animais PETA, na origem americana, ter lançado uma campanha para acabar com expressões que sugerem maus tratos a animais, o PAN (Partido dos Animais e Natureza) gostaria de ver alterações a expressões portuguesas que se referem negativamente ao trato dos animais.
A coisa surgiu há tempos, perante algumas críticas, acabou o charivari; por este ter acabado, entro eu com a minha sanfona.
O “dois em um” tem as suas vantagens, tirando aquele rifão de “matar dois coelhos com uma cajadada só” e ainda a mais ridícula pretensão de o alterar para “pregar dois pregos de uma martelada só”. Se fosse “comer dois pregos de uma dentada só”, se não se tomasse por alarvidade, faria mais sentido.
Não se julgue que isto só se aplica à Língua portuguesa. Em inglês, a expressão acima é “kill two rabbits with one blow” e a expressão comparada à nossa é "matar dois pássaros com uma pedra" (kill two birds with one stone), que passará a poupar as aves com  "alimentar dois pássaros com o mesmo pão".
Embora não tenha o mesmo sentido, dizer “mais vale dois pássaros a voar do que um na mão”, e não proferir “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”, se me é permitida a sugestão, ainda que o rifão perca todo o sentido, seja “mais vale três pássaros a voar e nenhum na mão”.
Parece que não, mas sou pela vida e protecção dos animais. Sou incapaz de matar algum, o que não quer dizer que, como carnívoro, não passe ao dente aqueles que os outros sacrificaram. Suponho que me alivia pensar assim: já está morto, de qualquer forma não foi morto para mim, qualquer um o podia comprar. Enfim, se calhar está na hora de aderir ao veganismo e tornar-me vegetariano.
Quando andava aí pelos meus cinco anos, os meus pais tinham na coelheira uma coelha. Para mim era um animal de estimação, com quem arranjei alguma empatia; para os meus pais era mais um animal de criação, predestinado a ir parar a uma panela, quando se chegasse a ocasião. Eu não sabia disso, presumi que a coelha estava ali para ser protegida e para compensar a minha solidão de filho único. E enganei-me. Quando dei conta, certo dia encontrei a coelheira vazia e a sua pele estendida num alguidar da cozinha. Foi um choque! Um choque daqueles que marcam, mas marcam mesmo, talvez percebendo que a vida de quem gostamos não depende dos nossos gostos e desejos. Ainda me arrepia a passagem ao escrever sobre ela. Nunca mais comi carne de coelho. O próprio cheiro desses cozinhados me agonia. E o destino da coelha, daquela forma e naquela idade, ficou marcado a fogo na minha memória.
Sigamos adiante para uma próxima alteração.
“Pegar uma flor pelos espinhos” esteve em cima da mesa para substituir uma máxima já velha e relha que nos ensina a “pegar o touro pelos cornos”. Pois bem, embora já alguns de nós, imprevidentemente tivéssemos pegado uma flor pelo caule espinhoso, isso aconteceu e não é avaria nenhuma; nenhum de nós, a não ser que me esteja a ler algum forcado da cara, ousou pegar um touro pelos cornos. Pela minha parte, nem pelos cornos nem pelo rabo e desejo que ele não pegue em mim por parte alguma.
Uma outra alteração deixa o recado para não se usar a expressão “bater num cavalo morto”, substituindo-se por uma outra que leve o mesmo sentido, equivalente àquela que se diz “bater na mesma tecla”, “insistir no mesmo” ou “ser teimoso”. Essa outra será, ainda mais equívoca do que a maldade de bater no cavalo defunto, que é “alimentar um cavalo alimentado”. Se me pedissem a opinião, fugindo aos cavalos mortos e bem alimentados, preferia que se tomasse uma outra, menos ofensiva – “chover no molhado”.
Já houve outras tentativas, mesmo antes do PETA e do PAN pensar nelas, de alterar ditos e canções onde se “maltratam” os bicharocos. Exemplo disso é a letra da canção “Atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu”. Dessa arte preferiu-se – e até pode ser bem sucedido, porque há aqui de facto a violência na boca de uma criança –  modificar de modo a ficar “Atirei o pão ao gato, mas o gato não comeu”; o mesmo não sucederia se os mais atrevidos e maldosos resolvessem cantar “atirei o pai ao gato”…
É natural que todas estas expressões já vêm do tempo das cavernas e quem as profere apenas quer reforçar a ideia sem pensar na prática do dito. Tentar modificar ou, pior ainda, proibir por iniciativa legislativa um aforismo que não passa disso mesmo, parece-me ser uma patetice pegada. Melhor fora cuidar por decreto a defesa dos animais que, mesmo retirados os aforismos ofensivos, sofrem na pele os descuidos dos seus parentes vivos da Terra.
O PETA devia preocupar-se primordialmente com o presidente Trump, o qual não se preocupa com animais e muito menos com a natureza, um caso de estudo que, bem analisado, se saberá que o presidente se preocupa apenas com ele mesmo. E também há no rifoneiro português um provérbio para ele: "quem com muitas pedras bole, uma lhe dá na cabeça”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

OS LIVROS EXCOMUNGADOS



Uma das maiores iniciativas culturais do séc. XX foi a criação das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Para mim, das melhores e das mais benéficas. Foi graças a esta iniciativa que eu tive acesso a muitos livros, em S. Romão (Serra da Estrela) e em Viseu (Abraveses), sendo que nesta cidade, não havendo biblioteca itinerante, tinha de percorrer a distância a pé até Abraveses, cerca de 10 quilómetros, algumas vezes debaixo de chuva e com os livros por dentro do casaco.
Os livros iam até às aldeias mais recônditas onde, como é provável, não existisse um único exemplar, a não ser em casa do professor e do pároco, se bem que quanto a este último, como vou descrever, era matéria maldita e excomungada, pelo que devia servir, caindo lá, para acender o lume da lareira.
Este caso verídico passou-se com o poeta António José Forte (1931-1988) quando era funcionário de uma dessas bibliotecas. Indo ele e o seu colega, dois dias depois do Natal de 1960, até uma aldeia minhota (Parada de Bouro –Vieira do Minho) para cumprir o dever de levar livros aos leitores, aconteceu que lá apareceu o padre aos berros e a intimidar os dois funcionários e requisitantes, acusando uns de estarem a emprestar livros “protestantes” e os paroquianos de levarem para casa aqueles panfletos do demónio. Não contente com as palavras, retirou alguns livros das mãos das mulheres que os levavam requisitados e atirou-os ao chão lamacento, ameaçando excomungar quem levasse aquele “mal” para casa.
O que foi ele dizer! Quase todos os que requisitaram os livros, principalmente as mulheres, foram acometidos da mesma psicose, imitaram o padre e atiraram os livros ao chão ou para dentro da carrinha, ao mesmo tempo que proferiam insultos e ameaças. Ao coro feminino, juntaram-se os homens que vinham do trabalho com sachos às costas, ameaçando os “intrusos” que vinham conspurcar quem estava na graça de Deus. É caso para dizer: os tolos não se semeiam nem se plantam: nascem espontaneamente!
Poucos desobedeceram e terão recebido a excomunhão, que não lhes terá feito mossa alguma, ao contrário dos ignorantes que se propuseram como figurantes da época dos cavernícolas. O que valeu para os dois homens da Gulbenkian e para os livros, foi eles darem o fora, evitando que se abrissem covas no chão para enterrar todo o papel, se não fosse mais prático chegarem um fósforo e queimarem aquela papelada de “belzebú”. À guisa de muitos autos-de-fé, vontade não lhes faltaria de queimarem os livros para se verem livres deles e não para verem tições acesos. Ainda pior, se ficassem os dois trabalhadores a pedirem justificações, certamente a percussão das sacholas estaria apta à rachadela de cabeças e a sorte da biblioteca itinerante seria outra.
Ao ler este episódio lembrei-me do Bandarra, o profeta sapateiro. Um dos mais graves crimes que ele tinha cometido, de que foi julgado pela Inquisição, foi ler uma Bíblia em linguagem. Era proibido possuir e ler o livro sagrado traduzido em português, livrando-se da fogueira por uma “unha negra”: não era cristão novo; não quis alvoroçar os cristãos novos, citando trechos bíblicos; abjurou e participou no auto de fé para se livrar dos pecados da obra; prometeu não possuir mais livros sagrados, a não ser o “Evangeliorum” e o “Flos Sanctorum”, não ler nem escrever sobre o Antigo Testamento, sob pena de maior castigo, naturalmente o das brasas.
Imagino se o meu livro “O Padre Costa de Trancoso”, história ficcionada sobre a lenda de um sacerdote do séc. XV que fez gerar 299 filhos em 53 mulheres, estivesse naquela carrinha, ele que foi publicado 47 anos depois! E imagino também, dentro dos parâmetros de “estilismo” dos jurados do Prémio LeYa 2019, que jeito faria um padre deste quilate no seio deles, justificando a repulsa da atribuição do galardão a 409 originais!
Nem sei se aqui há moral da história. Se meditarmos que o caso narrado pelo poeta aconteceu na segunda metade do séc. XX, 420 anos precisos sobre a condenação das leituras de Bandarra, é caso para encontrarmos as razões do atraso cultural que marcou este País, maninho de ideias e cheio de gentios submissos, e para percebermos até que ponto a Igreja, com aquela postura ridícula (felizmente por parte de poucos sacerdotes), foi fazendo perder a fé naqueles em que era suposto firmá-la, transformando alguns em patetas alegres.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

VOO ATRIBULADO NA "BARRIGA DE GINGUBA"


Com o meu pai ao serviço da Força Aérea em Moçambique, tinha eu 12 anos, vi-me a fazer uma viagem de avião com ele entre Nampula e a Beira (BA 10), regressando dias depois no trajecto inverso. Na altura, estava ao serviço da FAP um avião que tinha a alcunha de “barriga de ginguba”, designado de fábrica como Nord 2502F Noratlas. Tratava-se de um bimotor de caudas laterais duplas, unidas na traseira do aparelho, mantendo no meio aquela espécie de amendoim (ginguba ou jinguba é o termo Kimbundu para amendoim) onde viajavam passageiros, em número de 35, e carga da pesada, designadamente camiões de combate, como as Berliet.
Foi nessa viagem de regresso a Nampula que o Noratlas, pintado de alumínio e com aquele aspecto de torpedo com asas, foi acometido por uma violenta tempestade, ficando com um dos motores em falha, a engasgar-se. Havia nuvens e turbulência severa, abanando aquela coisa como se um maluco dum barman estivesse a preparar lá dentro um shake de gin e tonic. Pior ainda, quando aquele tipo de aparelho, se bem que robusto, estava limitado a voar a altitudes que não ultrapassavam os três mil e quinhentos metros. Aguenta e cara alegre!
Para quem nunca viajou naquelas circunstâncias, aviso que é a forma mais radical de viajar de avião. Os assentos são em lona, ao longo das janelas redondas, de um lado e outro, pelo que os passageiros vão de costas para a janela. Ali tanto dá levar o cinto de segurança posto como não levar o cinto das calças, uma vez que a carga vai no corredor central.
Naquele dia iam um jipe e uma Unimog, para além de caixas não sei de quê e tralha vária.

Pormenor das portas traseiras do Noratlas

Perante aquela turbulência, este rapaz também turbulento nos seus doze anos, perante um temporal que soprava à trompa, largou o lugar e foi espairecer para a cauda do avião. Foi um delírio. Aquilo é, de facto, uma porta dupla, que se abre para engolir o que quer que seja lá transportado, com apenas duas janelinhas ovais, que se unem quando fechadas. Não há ali assentos, apenas fuselagem. Se aquilo faz abanar aquele que lá viajar em tempo ameno, imagine-se com temporal.
O meu pai não deu conta que eu saí do lugar, visto eu ser na altura tão torto como cordel de pião no bolso das calças,  mas um dos quatro ou cinco membros da tripulação, talvez avisado por ele, decidiu acercar-se da traseira, onde eu placidamente via as nuvens e escassos farrapos de solo pelos postigos, dando ideia que me encontrava em trote sobre um garanhão.
- Tu deves ser marado da pinha, ó miúdo! Vai já para o teu lugar, antes que eu perca a paciência!
Obedeci e ainda lhe ouvi dizer, baixinho:
- Este puto tem nervos de aço.
Mais tarde, com mais assento, encontrei um rifão apropriado: “sofre de medo quem tem medo de sofrer”.
Aterrámos pouco depois, em Nampula, no aeroporto situado perto do bairro da Metecolia. Da “barriga de ginguba” saiu um então herói da guerra, o comandante paraquedista Rafael Durão em uniforme camuflado, então coronel ou tenente-coronel não sei bem, um homem de uma extraordinária coragem na frente de luta. Eu pus-me ao lado dele e assim marchámos, a compasso, até às instalações do aeroporto. Talvez, tirando os tripulantes, que ficaram para trás, fôssemos os únicos a caminhar direitos, uma vez que a maioria dos passageiros vinha com as cores da cidra e a cambalear como se acabasse de sair da centrifugadora da máquina de lavar.