quinta-feira, 7 de novembro de 2019

ANDAMOS TODOS ENGANADOS


Depois de a organização não-governamental dos direitos dos animais PETA, na origem americana, ter lançado uma campanha para acabar com expressões que sugerem maus tratos a animais, o PAN (Partido dos Animais e Natureza) gostaria de ver alterações a expressões portuguesas que se referem negativamente ao trato dos animais.
A coisa surgiu há tempos, perante algumas críticas, acabou o charivari; por este ter acabado, entro eu com a minha sanfona.
O “dois em um” tem as suas vantagens, tirando aquele rifão de “matar dois coelhos com uma cajadada só” e ainda a mais ridícula pretensão de o alterar para “pregar dois pregos de uma martelada só”. Se fosse “comer dois pregos de uma dentada só”, se não se tomasse por alarvidade, faria mais sentido.
Não se julgue que isto só se aplica à Língua portuguesa. Em inglês, a expressão acima é “kill two rabbits with one blow” e a expressão comparada à nossa é "matar dois pássaros com uma pedra" (kill two birds with one stone), que passará a poupar as aves com  "alimentar dois pássaros com o mesmo pão".
Embora não tenha o mesmo sentido, dizer “mais vale dois pássaros a voar do que um na mão”, e não proferir “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”, se me é permitida a sugestão, ainda que o rifão perca todo o sentido, seja “mais vale três pássaros a voar e nenhum na mão”.
Parece que não, mas sou pela vida e protecção dos animais. Sou incapaz de matar algum, o que não quer dizer que, como carnívoro, não passe ao dente aqueles que os outros sacrificaram. Suponho que me alivia pensar assim: já está morto, de qualquer forma não foi morto para mim, qualquer um o podia comprar. Enfim, se calhar está na hora de aderir ao veganismo e tornar-me vegetariano.
Quando andava aí pelos meus cinco anos, os meus pais tinham na coelheira uma coelha. Para mim era um animal de estimação, com quem arranjei alguma empatia; para os meus pais era mais um animal de criação, predestinado a ir parar a uma panela, quando se chegasse a ocasião. Eu não sabia disso, presumi que a coelha estava ali para ser protegida e para compensar a minha solidão de filho único. E enganei-me. Quando dei conta, certo dia encontrei a coelheira vazia e a sua pele estendida num alguidar da cozinha. Foi um choque! Um choque daqueles que marcam, mas marcam mesmo, talvez percebendo que a vida de quem gostamos não depende dos nossos gostos e desejos. Ainda me arrepia a passagem ao escrever sobre ela. Nunca mais comi carne de coelho. O próprio cheiro desses cozinhados me agonia. E o destino da coelha, daquela forma e naquela idade, ficou marcado a fogo na minha memória.
Sigamos adiante para uma próxima alteração.
“Pegar uma flor pelos espinhos” esteve em cima da mesa para substituir uma máxima já velha e relha que nos ensina a “pegar o touro pelos cornos”. Pois bem, embora já alguns de nós, imprevidentemente tivéssemos pegado uma flor pelo caule espinhoso, isso aconteceu e não é avaria nenhuma; nenhum de nós, a não ser que me esteja a ler algum forcado da cara, ousou pegar um touro pelos cornos. Pela minha parte, nem pelos cornos nem pelo rabo e desejo que ele não pegue em mim por parte alguma.
Uma outra alteração deixa o recado para não se usar a expressão “bater num cavalo morto”, substituindo-se por uma outra que leve o mesmo sentido, equivalente àquela que se diz “bater na mesma tecla”, “insistir no mesmo” ou “ser teimoso”. Essa outra será, ainda mais equívoca do que a maldade de bater no cavalo defunto, que é “alimentar um cavalo alimentado”. Se me pedissem a opinião, fugindo aos cavalos mortos e bem alimentados, preferia que se tomasse uma outra, menos ofensiva – “chover no molhado”.
Já houve outras tentativas, mesmo antes do PETA e do PAN pensar nelas, de alterar ditos e canções onde se “maltratam” os bicharocos. Exemplo disso é a letra da canção “Atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu”. Dessa arte preferiu-se – e até pode ser bem sucedido, porque há aqui de facto a violência na boca de uma criança –  modificar de modo a ficar “Atirei o pão ao gato, mas o gato não comeu”; o mesmo não sucederia se os mais atrevidos e maldosos resolvessem cantar “atirei o pai ao gato”…
É natural que todas estas expressões já vêm do tempo das cavernas e quem as profere apenas quer reforçar a ideia sem pensar na prática do dito. Tentar modificar ou, pior ainda, proibir por iniciativa legislativa um aforismo que não passa disso mesmo, parece-me ser uma patetice pegada. Melhor fora cuidar por decreto a defesa dos animais que, mesmo retirados os aforismos ofensivos, sofrem na pele os descuidos dos seus parentes vivos da Terra.
O PETA devia preocupar-se primordialmente com o presidente Trump, o qual não se preocupa com animais e muito menos com a natureza, um caso de estudo que, bem analisado, se saberá que o presidente se preocupa apenas com ele mesmo. E também há no rifoneiro português um provérbio para ele: "quem com muitas pedras bole, uma lhe dá na cabeça”.

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