quarta-feira, 17 de julho de 2019

A REFORMA

A pedido de um Leitor e Comentador deste blog, segue o seu texto...

A REFORMA

Autor: Luís Rente
A aposentação há tanto ambicionada, finalmente, chegou.
Depois de uma carreira profissional de mais de 35 anos em que desempenhara quase todos os cargos e tarefas, chega ao fim esta fase da vida que teve algo de comparável com o múnus sacerdotal. É-se professor vinte e quatro horas por dia, para aqueles que entendem que o docente tem que ser um exemplo de comportamento e atitude cívica que não lhe deixe “telhados de vidro” que podem ser usados posteriormente em seu prejuízo. “Educar pelo exemplo” diz-se agora com grande ênfase.
A fase final foi verdadeiramente penosa. Não pelo serviço docente, propriamente dito, mas pelas responsabilidades anexas que a superestrutura ministerial atribui aos professores. Antes de mais, a carga burocrática que cada turma ou cada aluno carrega consigo (relatórios, registo de contatos, avaliação e justificação da mesma, …) mas também a atitude quase persecutória de certos encarregados de educação, da pesporrência de alguns colegas, à atitude pouco colaborante de alguns auxiliares de ação educativa. Acresce o fato de ter vindo a lume uma profusão de medidas legislativas na área de concursos, de procedimentos administrativos, da organização curricular, da regulamentação dos apoios aos alunos com Necessidades Educativas Especiais que, só por si, se tornaram um fator de perturbação da vida quotidiana da escola. Por último, as alteração ao modelo de gestão, que reintroduziu a figura do antigo reitor, repristinado na pessoa do Diretor, quase sempre um ex-colega agora investido de novas funções sem que lhe tenha sido proporcionada, na maior parte dos casos, qualquer formação específica (gestão financeira, liderança, resolução de conflitos, planificação por objetivos) – “não peças a quem pediu, não sirvas a quem serviu’’
Afirmam os teóricos que as reformas em educação se repercutem no prazo de uma geração. Ou seja, as alterações de fundo fazem sentir-se passados cerca de 25 anos. A grande cesura na sociedade portuguesa (sistema educativo, incluído) acontece com o 25 de Abril, data a partir do qual se instituiu o atual regime democrático, Recorde-se que os grandes objetivos dos capitães revolucionários se sintetizavam nos três D’s - Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Os dois primeiros concretizam-se na curta duração (eleições livres e nova Constituição para o primeiro D; independência negociada com os movimentos de libertação dos territórios ultramarinos, para o segundo). O terceiro D revelou-se mais difícil de alcançar sendo tarefa de longo prazo, pois desenvolvimento encerra um conjunto de quesitos que só a longa duração permite alcançar aí se incluindo, como pressuposto básico, a educação enquanto fator essencial ao progresso dos restantes setores da vida comunitária.
Refiro-me à universalização do ensino (a par da saúde, lembre-se).[1]
Para implementar tal desiderato na educação era preciso reformar em três aspetos pilares do sistema: reformular escolas, conceber novas metas educacionais e programas curriculares, recrutar professores. Neste último aspeto se encontrava o busílis da questão. Os dois primeiros tinham solução, assim houvesse dinheiro para a arquitetura e a engenharia civil e para pagar as equipas de programadores curriculares. Os professores demoravam anos a formar e era urgente recrutar, “rapidamente e em força’’[2].
Entrei nesse rebuliço aos vinte anos, com duas saídas precárias: para o serviço militar e para uma experiência no setor do comércio. De ambas não me ficou grata recordação - da primeira porque sempre tive uma atitude de repulsa por uniformes (fardas, batinas e batas); da atividade comercial (vendas) pelo ambiente algo fétido que se vivia na concorrência desleal, que “luvas” e negócios rasteiros ajudavam a criar, ou a cupidez de clientes e colegas potenciavam.
Decididamente, a escola era ‘’a minha praia’’. Avancei pelos Educação Física,  uma área ‘’ad contrário’’ da minha personalidade. Compensava essa inabilidade com uma relação pedagógica pró-ativa, buscando os pontos fortes de cada aluno a fim de potenciar cada um desses facilitadores ao mesmo tempo que postergava para segundo plano os opositores que julgava serem prejudiciais ao desempenho de cada um.
Na fase final da carreira senti que era tempo de enfrentar novos desafios, onde pudesse aplicar de forma mais efetiva a minha apetência para o estudo minucioso da legislação que regulamentava o sistema educativo. Acresce a isto o fato de, depois de uma sacrificada licenciatura em Filosofia, na Universidade de Coimbra, ter surgido a possibilidade de frequentar um Mestrado em Ciências da Educação, na Universidade Clássica do Porto, com o qual fico com a especialização em Educação Especial - um investimento com duplo benefício.
Foi aqui que permaneci nos últimos quinze anos. Sempre escapando aos casos mais difíceis, escudando-me em horas noturnas, cursos profissionalizantes, cargos de representação e a asserção, sempre pertinente, que o Professor de Educação Especial não pode (não tem que) dominar as matérias curriculares reservando-se para a aplicação de técnicas especiais de ensino/aprendizagem – alguém escreveu que, na maior parte dos casos, não se trata de problemas de aprendizagem mas sim de “ensinagem”.
O primeiro mês da nova condição de aposentado (até me custa a dizer) passou-se num ápice. Pensava dedicar o tempo a arrumar papelada dispersa e reorganizar a disposição dos livros nas prateleiras da minha biblioteca. Nada disso aconteceu. Foi um lapso de tempo de autêntica lazeira embora gostasse de pensar que tinha sido um período de lazer.
 Os dois meses seguintes foram mais profícuos no que diz respeito â tal tarefa prioritária a que me propusera – selecionar e dar arrumação a montes de papéis soltos, resmas de pequenas capas com temática variada recolhida em múltiplas ações de formação, encontros profissionais, reuniões politicas e sindicais. Era a função em que me embrenhava da parte da tarde, por vezes após uma ligeira “siesta” -  máscara e luvas  e, no final, um duche retemperador. A manhã era dedicada à leitura dos jornais, um café comentado com alguns amigos ou ex-colegas, compras pontuais no supermercado e preparar a refeição familiar.
No terceiro mês começaram os primeiros sintomas de que algo não corria bem, no meu organismo – falta de energia nas pernas, pouca força de braços, cansaço generalizado. Terá sido daqueles trabalhos forçados? Nunca foram exercícios excessivos de exigência física. Antes pelo contrário. Ficava parado a reler textos antigos donde resultava muitas vezes alguma admiração comigo próprio: como conseguira, naquele tempo, escrever coisas tão complexas e bem escritas??!! Sínteses, recensões, resumos de obras completas, ensaios. Mas tinham sido escritos por mim de facto. “A necessidade aguça o engenho” é um provérbio português com plena aplicação.
Começa, então, o meu périplo pelas diversas especialidades médicas. Primeiro foram os problemas intestinais e correlativos hemorroidais e aí vou eu a caminho de um proctologista famoso. Depois coração. Ecografias, Holter, prova de esforço - tudo normal na área cardíaca. Ao neurologista consultei por causa de umas dores de cabeça, pontuais e breves, em pontos diversos da calote cerebral - nenhum problema visível.
Todos me recomendavam alguma dieta. “Perder dez quilitos não seria mau” - ouvia repetidamente.
Inicia-se, então, a saga ciclista. Procurei travar conhecimento com uns amigos dos meus primos que praticavam ciclismo. Faltava, porém, tomar uma decisão importante: escolher ciclismo de estrada ou de crosse. Depois de ouvir diversas opiniões e consultas na net, avanço para a pesquisa dos preços de cada uma das modalidades, pormenor não despiciendo nesta minha situação de reformado - aposentado, esqueço-me sempre! E aí quase caía de costas. Os preços eram verdadeiramente proibitivos, era um investimento muito acima das minhas projeções. Andava eu com estas elocubrações quando a minha sócia me deu uma ideia genial (elas, de vez em quando, também têm algumas ideias brilhantes):
- Oh Manel! Por que não comprar uma bicicleta estática. No Verão pões na varanda, à sombra. Uns dias viras-te para cima e noutros viras-te para baixo. Assim vais mudando a paisagem. No Inverno, recolhes a bicicleta na sala, em frente da televisão  e vês aqueles programas ás vezes interessantes, que fornecem sugestões culinárias que podes ir aplicando.
(logo vi que a ideia tinha que trazer consigo algum lado prático que haveria de me tramar)
O proctologista, no entanto, alertou numa consulta de rotina:
- Olhe que as modalidades menos recomendadas para quem tem problemas na fase terminal do intestino são o ciclismo e a equitação.
Pensando bem, fazia todo o sentido mas nunca tal me passara pela cabeça. Surgiu então outra possibilidade, o ténis de mesa, aproveitando o facto de dois colegas, também aposentados, terem semelhante gosto pela modalidade e assim, passarmos uns fins de tarde desportivos e de cavaqueira.
Cada dia que passava mais se enraizava a ideia de que os tais problemas de saúde eram meramente psicológicos. Era necessário dar um rumo à vida, dar significado a cada acordar matinal, encarar a nova situação com otimismo e evitar o “discurso da lamúria” tão em voga na chamada sociedade civil. E tirar sentido às teorias negativistas que previam tempos catastróficos para os aposentados para quem se previam depressões, negativos estados de alma, tempos de “choro e ranger de dentes”.
A esta narrativa otimista faltou acrescentar um elemento fundamental: a companheira de mais de 35 anos, que lhe dispensou todo o apoio e incentivo e o ouvia com paciência nas lamentações dos dias maus e na euforia dos dias de maior otimismo.
Outro motivo de orgulho era uma filha única, muitíssimo inteligente, que seguira estudos na área da psicologia, fizera cursos avançados na Europa, que culminaram com um pos-doc numa das mais prestigiadas universidades parisienses. A parte afetiva ou amorosa da pequena é que não corria lá muito bem, fruto porventura, da excessiva dedicação ao estudo e ao trabalho. Tivera já duas ou três experiências, algumas com um ar já adiantado, mas nada permanecera por tempo aceitável.
E assim se vão escoando os dias, divididos entre a culinária caseira, o acompanhamento dos futebóis, as tentativas quase sempre goradas de intervenção na jardinagem, o rever filmes antigos (ai o Canal Memória!!) e outros atuais “pescados” na net.
E pronto! Como dizia uma das nossas atuais figuras públicas de maior exposição: “É a vida”



[1] Uma canção da época, de autoria de Sérgio Godinho, tinha como refrão: “A Paz, o Pão, Habitação Saúde, Educação, só há liberdade a sério quando houver liberdade de decidir, quando pertencer ao povo o que o Povo produzir….”
[2] A expressão atribui-se a  António Salazar num discurso proferido no início da guerra colonial.

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