Com chuva ou sem ela, a Festa de S. Sebastião
prometia sempre. Sãos e doentes, que eu me lembre, lambiam-se de desejos pelo
folguedo. Chegavam farroncas e brigões de lódão na mão e chapéu à banda; vinham
romeiros duvidosos que queriam desougar o bandulho nas barracas dos comes e
bebes; juntavam-se velhas beatas a segredarem orações e a cortarem na casaca do
próximo; saltitava a canalha excitada, à lapada uns aos outros, com os
desabitados pés apertados nas botas acabadas de estrear. Era natural que também
aproveitavam a maré da chusma os pilha-carteiras e mais naturalmente deambulavam,
a leste desses, dois ou três praças da Guarda Republicana, de peitos inchados e
de “mauser” com bandoleira ao ombro, derrancadinhos por saírem dali com o lombo
inteiro e o dever cumprido. Não faltavam os tunantes de costa direita a
quererem esbanjar uns cobres e outros que, por desfastio ou engano, vinham
desaguar ao arraial com tanta devoção como um asno bronco.
Mal entrava no redondel a banda de música, a coisa
era séria e dava gosto ouvir. Se era rogada uma outra qualquer, das do lado da
serra, a charanga dava mostras de perceber tanto de pautas como de lagares de
azeite. Lembro-me de uma - não lhes sei dizer de onde, nem vem a propósito - em
que o maestro coxeava à cabeceira como uma traineira batida pelas ondas,
pendendo a cabeça de um lado para o outro, a compasso. Embora eu fosse um
catraio, dava conta que o fulano não se preocupava muito com os desacertos,
enquanto os músicos, com tal indulgência, abusavam forte e feio, mandando ao
diabo a harmonia. Quando o repertório picava nos agudos, fazia julgar um carro
de bois por uma ladeira abaixo. Enfim, tirante os ouvidos do bom padre – mais tarde,
meu paciente mestre em Latim - para os patolas, fífias a mais ou a menos, interessava-lhes
tanto como a praga do imposto braçal! Não lhes cobravam osso, ao contrário da “finta”.
Puxassem o trombone e a tuba, rebentassem os foles no sopro; tinissem os
ferrinhos; trupassem sem dó na pele do bombo a lembrarem-se da sogra,
esfandegassem a seu belo prazer e a eito a partitura, festa é festa, minha
gente!
Quando os músicos paravam para o descanso, corriam
todos para a tasca de meu pai, onde naturalmente iam molhar a solfa. Lembro-me
que em certa ocasião, um dos pilantras, que já vinha bem aviado - tocava aquela
coisa preta à guisa de grande enguia tesa, que eu, na minha inocência, chamava
pífaro - assentou-me, sem razão alguma, a palma da mão no cachaço, enquanto
dizia para meu pai:
- Venha depressinha com a pinga! - E porque era
apressado: - Mas isso vem hoje ou amanhã?
Dei conta que o marmanjo atirou com o boné para
cima de um banco, enquanto ia aconchegando os dois quartilhos, alimentando a
hidra ou a esponja que trazia no estômago.
Pensei, porque nem sequer era santo de pau, como o
não sou hoje:
- Aquela pancada no toutiço doeu, mas não vais
perder pela demora!
Apanhei-o distraído, agarrado ao copo como Prometeu
ao rochedo, corri como uma seta para o banco, agarrei no boné e tratei de o levar
por baixo da camisa, sem que ele se apercebesse da manobra.
Chamado à pressa, que só ele faltava no agrupamento
(naquele estado, empregar o verbo "faltar" é uma força de expressão),
foi pelo boné, mas este... quem o viu? Coçou a moleirinha, meio inclinado para
trás e a beiça estendida para diante, enquanto os olhos divagavam à volta. Onde
raio tinha deixado o barrete? Ia jurar que o tinha encomendado ao banco de
madeira e não estava lá. Diabo, ele não tinha pernas!
Já soltava palavrão atrás de palavrão, quando uma mulherzinha
entrou na taberna e o avisou:
- Ó ti coiso! Por acaso é seu aquele barrete que
está ali fora, atrás do macho?
- Atrás do macho?! Catancho! Como foi lá parar?
Lá saiu aquele neolítico para fora, desperta a sua
atenção para o sítio onde o Ivo "Langão", moleiro e meu primo, tinha prendido
a cavalgadura da recovagem da farinha. O boné encontrava-se no chão, entre os
quartos traseiros da besta, em posição invertida, como uma taça. Por dentro da
copa e por fora, o cavalo tinha aliviado os intestinos, na forma de uns pomos redondos
e acastanhados, com todo o aspecto fumegante de recente fornada.
- Foi o puto! Se apanho o gajo!...
Por essa altura, já eu me tinha posto a fresco, a
rir-me da cena à janela do meu avô. E foi daquele zigurate que assisti à derradeira
limpeza dos torrões de esterco do adereço filarmónico, enquanto o desconsolado
músico, disputando com a gravidade palmo a palmo como uma barca no Nilo, dando
conta do fedor que ia espalhar na banda, me prometia das boas:
- Até capo o miúdo, se o apanho!
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